Música

Livro e CD levam ao universo de Taiguara

Lançamentos em outubro relembram batalhas do compositor contra a censura. Álbum trará músicas inéditas

Folhapress

Taiguara era um libertário. Gostava de novas ideias e de conviver com gente que sonhava

Taiguara “era um menino do sol e da Silva”, definiu em uma de suas canções, regravada em 2012 por seu filho mais novo, Lenine Guarani, hoje com 26 anos. Também filho de músicos, Taiguara é lembrado por boa parte do público pelo sucesso na chamada era dos festivais (com Modinha, de Sérgio Bittencourt, e Helena, Helena, Helena, de Alberto Land) e canções românticas, como Universo no teu Corpo, Hoje e Teu Sonho não Acabou. Mas um livro a ser lançado em outubro jogará luz em outro aspecto da carreira do compositor que surgiu na noite de São Paulo, ainda nos anos 1960, e morreu em 1996, aos 50 anos: a de criador fustigado pela censura.

“Ele foi um dos artistas mais perseguidos, talvez o músico mais perseguido pela ditadura”, diz a jornalista Janes Rocha, autora de Os Outubros de Taiguara. O trio de autores, por assim dizer, preferencial da censura – na visão da pesquisadora – foi formado por Taiguara, Chico Buarque e Gonzaguinha.

Como exemplo, a partir de buscas no Arquivo Nacional, ela cita um lote de 140 músicas de Taiguara registradas no Departamento de Censura e Diversões Públicas, da Polícia Federal, de 1970 a 1974. Só aí foram 48 canções vetadas. “Teve ainda outras que ele fez fora (do país), vetadas, e que não passaram por esse processo”, acrescenta, citando um disco inteiro gravado em Londres. E, claro, o emblemático LP Imyra, Tayra, Ipy, de 1976. O álbum chegou a ser distribuído, para ser recolhido em seguida. Um show de lançamento previsto para a região das Missões, no Rio Grande do Sul, foi cancelado sem explicações. “Estava tudo certo, contratado. Mandaram avisar que não ia ter show nenhum”, conta Janes.

“Ele era uma pessoa que se expunha muito e não tinha meias-palavras”, observa a jornalista. “Acabou ficando muito no alvo. Imyra foi a gota d’água para ele. Oitenta músicos, um trabalho primorosíssimo, uma produção maravilhosa… Ele nunca foi preso nem torturado. Essa foi a tortura: perder o trabalho.” Taiguara, que acabara de retornar ao Brasil após um período na Europa, deixou novamente o país, rumo à África. Na volta, já nos anos 1980, enfrentou resistência pelo discurso pró-comunismo. Compôs, inclusive, uma canção para Luiz Carlos Prestes (O Cavaleiro da Esperança). Janes diz que a relação de Taiguara, mais que partidária, era pessoal, essencialmente com o veterano líder.

“Quando voltou de viagem, ele radicalizou mesmo”, afirma Janes, citando o LP Canções de Amor e Liberdade, de 1984, que tem Voz do Leste como uma das composições mais conhecidas (“Sou voz operária do Tatuapé/ Canto enquanto enfrento o batente com a mão”). “A censura conseguiu o objetivo deles, que foi tirar ele de circulação. Quando ele voltou e quis retornar, foi difícil.”

Mergulho criativo

Imyra, mergulho criativo e experimental de Taiguara, reuniu nomes como Wagner Tiso (regência), Hermeto Pascoal (arranjos), Nivaldo Ornelas, Toninho Horta, Paulo Braga, Jacques Morelembaun e Novelli. As 11 faixas, algumas instrumentais, trazem sonoridades brasileiras, africanas, indígenas, ibéricas, fruto de raízes e viagens do autor. Três composições são assinadas pela companheira de Taiguara na época, Gheisa, em uma tentativa de escapar da censura. Não adiantou. Uma delas era Terra das Palmeiras, referência clara ao Brasil e ao período autoritário:

Sonhada terra das palmeiras
Onde andará teu sabiá?
Terá ferida alguma asa?
Terá parado de cantar?

Sonhada terra das palmeiras
Como me dói meu coração
Como me mata o teu silêncio
Como estás só na escuridão

Ah! Minha amada amordaçada
De amor forçado a se calar
Meu peito guarda o sangue em pranto
Que ainda por ti vou derramar

Nivaldo Ornelas conta que ninguém conseguiu ouvir o disco na época. Ele só foi escutá-lo no relançamento do disco, em formato de CD, no ano passado, pela Kuarup, com autorização da gravadora EMI, que detém os direitos originais do disco. “Acho uma obra-prima. Descontando a parte técnica – 40 anos fazem diferença –, era muita ideia bacana. Foi gravado em dois canais. Quando alguém errava, começava tudo de novo. No meu modo de ver, não é um disco, mas um tratado”, diz Ornelas. “Foi rápido e rasteiro”, acrescenta, referindo-se à gravação. “O encontro foi fantástico. Ele pegou um pessoal que já se conhecia. Acho que não teve nem ensaio.”

Ele também destaca o momento criativo da música brasileira do período. “Muita coisa vinha sendo feita. Eu já tinha gravado com o Milton (Nascimento) o Milagre dos Peixes e Minas, o Corações Futuristas com Egberto (Gismonti) e o festival de Montreaux com Hermeto”, lembra. Segundo o instrumentista, Taiguara era “excelente músico e tocava bem piano”. No início da carreira, era um cantor que “fechava quarteirão”, famoso pelo repertório romântico. E foi “um cara de caráter forte”, que defendia suas posições.

Eram outros tempos mesmo, conta Ornelas. “As pessoas não tinham pressa, não tinha de entregar produto, não havia pressão. Tinha diálogo. Era se reunir num estúdio e nem tinha tanto ensaio. Muitas vezes, encontrava-se nos botecos da vida e ali nasciam as ideias.”

Curadora de parte da obra de Taiguara, a Kuarup prepara, também para outubro, o lançamento do CD Ele Vive, com faixas inéditas e outras gravadas ao vivo. Outubro foi o mês de nascimento de Taiguara Chalar da Silva, uruguaio de origem, filho do bandeonista Ubirajara e da cantora Olga, desde os 4 anos no Rio de Janeiro e a partir dos 15 em São Paulo. Outubro está no título do livro de Janes Rocha e fez parte do nome de um show do artista em 1986. Também remete à Revolução Russa. Taiguara era um libertário. Segundo Ornelas, “gostava de novas ideias, de conviver com gente que sonhava”.