Atitude

Da Revolução dos Boys ao cineclubismo, do bairro ao mundo

Do trabalho lúdico com crianças nas periferias às biografias de Mandela e Malcom X, Jeosafá Gonçalves tornou-se um homem de palavras e ações

Marcia Minillo/rba

O escritor Jeosafá Fernandez Gonçalves, autor de poesia, ficção e obras didáticas relacionadas à literatura

No começo daquela tarde de setembro de 1979, enquanto bancários se reuniam em assembleia no pátio da Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco, para discutir o fracasso das negociações com os bancos, office-boys se concentraram na rua Boa Vista, no centro financeiro paulistano, e saíram gritando palavras de ordem contra a Polícia Militar e os fura-greves, numa manifestação sem alvo definido.

A polícia tentou dispersá-los, o que só fez aumentar a confusão, que se transformou em passeata e em um quebra- quebra que transtornou o coração da cidade, como escreveria o jornalista Gilberto Lobato Vasconcelos, o Giba, em seu livro Revolução dos Boys. Imortalizados na música de Kid Vinil, os boys eram jovens com idade entre 14 e 16 anos, que faziam principalmente o serviço nos bancos, porém, geralmente a pé, para usar o dinheiro da condução em lanches ou fichas de fliperama.

Sem entender nada, me dei conta de que eu estava no meio do confronto entre policiais e bancários, solidários aos meninos. Assustado, fui protegido por alguns deles, que me levaram para dentro de um escritório no quinto andar de um prédio na rua 7 de Abril, de onde eram atirados diversos objetos e cestos de lixo sobre a polícia”, lembra o escritor e blogueiro Jeosafá Fernandez Gonçalves, 50 anos, autor de poesia, ficção e obras didáticas relacionadas à literatura e à língua portuguesa. Na época, um office-boy de 14 anos. “Como ninguém na minha família sabia que era preciso fazer vestibulinho para conseguir vaga no colegial, fiquei sem estudar naquele ano e fui trabalhar.”

O contato inesperado com um movimento de adolescentes habituados a jogar bola numa praça próxima à Galeria Metrópole, também no centro de São Paulo, atrapalhando quem almoçava por ali, derrubou a ficha de Jeosafá. Logo passou a participar de passeatas, como a dos trabalhadores do Moinho São Jorge, na Avenida Paulista. O menino pobre da Vila Ede, na periferia da zona norte, que foi entregador de jornal e funcionário de granja, se deu conta dos resquícios da ditadura em pleno processo de redemocratização do país – “Lento, gradual e seguro”, como diziam os militares.

A aproximação com bancários descortinou o até então desconhecido mundo dos cineclubes – ajudou a organizar o do Bixiga, no bairro da Bela Vista –, a consciência política e a militância por meio de trabalhos culturais nas periferias pobres, como reunir a criançada para comer pipoca enquanto contava histórias, ou no trabalho em mutirões para a construção de casas populares, coordenados pela então líder comunitária Luiza Erundina.

A base cultural do contato com realidades tão diversas e pessoas tão interessantes, como conta, permitiu o sucesso no vestibular e o ingresso, aos 26 anos, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. O mestrado na mesma instituição, convertido em doutorado pelo desempenho e interesse da linha de pesquisa em estudos comparados de literatura de língua portuguesa, com especialização em relações Brasil-África, abriu as portas de muitas escolas. Foram 16 anos como professor do ensino básico nas redes pública e particular, chegando a dirigir algumas, como a da antiga Febem, na avenida Celso Garcia, e outros 11 anos em faculdades.

Ao mesmo tempo em que lia para crianças, percorria a cidade ouvindo garis, feirantes, frentistas, prostitutas, trombadinhas, cabeleireiras e quem mais quisesse contar suas histórias. Todas essas tragédias e glórias, mais um trabalho de pesquisa bibliográfica e de imagens, compõem a série Era uma vez em meu bairro, com volumes sobre as zona norte, sul, leste e oeste. A zona central está em fase de pesquisa.

Jeosafá é também autor de O Jovem Mandela, única obra em língua portuguesa sobre a vida do líder sul-africano, morto há quase um ano. Ele mistura ficção e realidade para dar corpo às angústias e às ações de um jovem que mais tarde seria um dos mais importantes personagens da história contemporânea mundial, por sua luta contra o regime de segregação racial na África do Sul.

O livro é um passeio pelo sertão africano, pelas minas de diamante mais profundas do mundo e suas péssimas condições de vida e trabalho, pela miséria das favelas de Johannesburgo e pela opressão aos negros e de origem indiana que levaram Nelson Mandela a optar pelos riscos da luta contra o apartheid, deixando de lado a zona de conforto de uma vida alienada. Jeosafá dedica-se agora a contar a história de outro jovem que marcaria a história: o líder negro norte-americano Malcom X. Em maio de 2015, serão lembrados os 90 anos do seu nascimento e, em fevereiro, os 50 anos de seu assassinato. “Seu sobrenome, Little, foi substituído por X durante seu tempo na prisão, numa forma de protesto contra a perda do nome original, africano, por seus antepassados quando escravizados”, conta o autor.

Radical opositor da violência racial e da injustiça social nos Estados Unidos, Malcom X esteve muito próximo de lideranças políticas como Fidel Castro, o chinês Mao Tse Tung e o presidente egípcio Gamal Abdel Nasser, que entre outras coisas nacionalizou o Canal de Suez. O líder negro, que pregava a independência econômica e a criação de um estado autônomo para os negros, foi assassinado aos 40 anos, no auge de sua potência física e intelectual. Até agora, sua história não foi contada por autor de língua portuguesa. Jeosafá Fernandez Gonçalves está preenchendo essa lacuna.