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À espera de um milagre, Alckmin ignora avisos e esconde a crise

Mesmo com as represas secando, governador espera a água bater na cintura para agir

EDSON LOPES JR/A2 FOTOGRAFIA

A iminente tragédia ambiental, com consequências sociais e econômicas, não era segredo. Em vez de assumir e enfrentar o problema, Alckmin voltou ao tempo em que o câncer era chamado de “aquela doença” – não se tocava no assunto, e o doente ia piorando até não ter chances

“Estamos passando por uma estiagem histórica. A falta d’água está presente em todo o Sudeste. Apesar da grave situação, estamos trabalhando para melhor servir. Use a água com muita consciência.” A mensagem está no site da Marina Estância Confiança, de Bragança Paulista, 90 quilômetros da capital paulista. O centro de lazer combina hotelaria e atividades náuticas às margens da represa Jaguari-Jacareí, que com outras cinco compõem o sistema Cantareira. De acordo com o atendente do setor de reservas, a paisagem está bonita, mas quem conhece a represa de outros carnavais logo percebe seu nível mais baixo. Mesmo assim, nenhuma das atividades aquáticas deverá ser suspensa neste verão.

Há em Bragança várias marinas, que criam empregos e receita para o município. De três anos para cá, o movimento vem caindo conforme o nível da água. “Pelo menos 300 trabalhadores desse setor foram demitidos. O ramo hoteleiro, de alimentação, o comércio em geral também são afetados. A indústria começa a sofrer”, diz Lamartine Oscar Veiga, assessor de comunicação do Sindicato dos Trabalhadores em Hotéis, Bares e Restaurantes de Águas de Lindoia e Região.

Morador antigo de Bragança, ele acompanha o esvaziamento da represa nos últimos anos e foi um dos primeiros a levar o tema para o debate ambientalista. “O aumento da população, o boom imobiliário e a ganância comercial aumentaram a demanda por água. Faltaram planejamento e investimentos da Sabesp para a reposição do crescente volume retirado do sistema. Como ninguém percebia o que estava acontecendo?”, questiona, chamando a atenção para a ameaça aos municípios do Circuito das Águas de São Paulo. “Se nada for feito, cidades como Lindoia, Águas de Lindoia, Serra Negra, Amparo e Socorro, entre outras, passarão a compor o circuito da seca. Não terão como sobreviver.”

Com a conivência da imprensa comercial, Geraldo Alckmin abafou a crise e dela conseguiu se desvencilhar por um bom tempo. Pouca gente soube, por exemplo, dos protestos em Itu contra as torneiras secas, que terminou com ônibus incendiado. E muito menos que os reservatórios estão secando pela inoperância do governo estadual paulista – que transfere a culpa para São Pedro, que teria resolvido esticar férias. A população praticamente não sabe que o governo paulista tem pouco mais da metade das ações da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) e que é o governador quem escolhe quem vai presidi-la – como acontece com a Petrobras, cuja crise a mídia não faz cerimônia em vincular ao governo federal.

ADRIANO ROSA/AGÊNCIA SOCIAL DE NOTÍCIASProfessor Zuffo Unicamp
Zuffo: do final dos anos 1960 ao início dos 1970, SP tinha falta d’água e o racionamento era constante

Omissão determinada

Embora a Sabesp insistisse em negar, em outubro passado já havia racionamento em 35 municípios, prejudicando 5 milhões de pessoas e inflacionando o preço da água engarrafada, que mesmo assim começou a sumir das prateleiras. Se fosse pouco, famílias inteiras tiveram de recorrer a poços desativados e contaminados, começaram a estocar em recipientes improvisados, a comprar galões de água de origem duvidosa, vendidas até em pet shop. Sem que se toque no assunto – a Secretaria Estadual da Saúde nem sequer emitiu um boletim esclarecendo a população – a saúde está em risco também porque não é fácil tratar adequadamente o chamado volume morto, cuja qualidade a Sabesp jurava controlar em seus próprios laboratórios.

“A água dali é mais turva, mais contaminada, e o excesso de cloro também faz mal à saúde”, diz o coordenador do Observatório de Clima e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o sanitarista Christovam Barcellos. De acordo com ele, toda a água consumida neste momento tem de ser monitorada. “Também é necessário reforçar o sistema de vigilância para detectar surtos de doenças como a hepatite A, diarreia e dengue. Além de economizar água, a população deve relatar problemas de abastecimento, garrafões suspeitos, água turva e com mau cheiro, surtos de doenças na vizinhança.”

Confirmada a reeleição para um terceiro mandato, o pacto de silêncio começou a fazer água. A escassez e seus efeitos foram deixando de ser tabu nos jornais e na TV, a ponto de já noticiarem o final dos tempos do sistema. Ou seja, a confirmação do que os técnicos diziam e que Alckmin negava sem corar a face. No último dia 14, o novo presidente da Sabesp, Jerson Kelman, admitiu à Rede Globo que é possível que o Sistema Cantareira seque em março.

A iminente tragédia ambiental, com consequências sociais e econômicas, não era segredo. Doutor em Engenharia Hidráulica e Saneamento, o professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Antonio Carlos Zuffo explica que não é de hoje que se sabe que a natureza alterna períodos de pouca chuva com outros de chuvas mais abundantes. “Até final da década de 60, começo da de 70, a gente tinha problema de falta de água, com racionamento constante. A partir da década de 70 começou a chover mais e as enchentes estampavam os jornais. Agora devemos voltar aos tempos mais secos.”

Mais: em 2000, um estudo da Organização das Nações Unidas já previa que quase metade da população mundial vai ficar sem água no ano 2025. E institutos de hidrologia de várias partes do mundo já advertiam que as reservas poderiam se esgotar completamente, em um mapa que incluía São Paulo. Naquele mesmo ano, quando o também tucano Mário Covas governava São Paulo, paulistanos abastecidos pelo sistema Guarapiranga, o segundo mais importante da região metropolitana, tiveram a água racionada por três meses. Cinco anos antes, durante o governo do outro tucano Franco Montoro (então no PMDB – o PSDB ainda não havia sido criado), um racionamento com o pretexto de baixar o consumo da mesma Guarapiranga, previsto para durar uma semana, se arrastou por dois longos meses.

“Não é segredo que vêm por aí eventos climáticos cada vez mais extremos. E a capacidade dos sistemas produtores de água é insuficiente para atender a demanda crescente, ainda mais com clima desfavorável assim”, ressalta o especialista em gerenciamento de recursos hídricos e recuperação de reservatórios José Galizia Tundisi, do Instituto Internacional de Ecologia, de São Carlos (SP). Com base na análise de séries históricas de dados climáticos e hidrológicos, ele diz que uma mudança climática está em curso, que ameaça a segurança hídrica no Sudeste, especialmente na região metropolitana de São Paulo – o que sempre chegou ao conhecimento do governo.

FOTOS ALEX RIBEIRO/VISOR MAGICOSistema Cantareira
O novo presidente da Sabesp, Jerson Kelman, admitiu que é possível que o Sistema Cantareira seque em março

‘Aquela doença’

Em vez de assumir e enfrentar o problema, Alckmin voltou ao tempo em que o câncer era chamado de “aquela doença”. Como não se tocava no assunto, havia pouca pesquisa e opções de tratamento, e o doente ia piorando até não ter mais chances. Enquanto tinha o tempo a seu favor, ele não fez a manutenção dos sistemas e nem investiu para ampliá-lo de maneira sustentável, conforme o aumento da demanda. Muito menos buscou alternativas, como a transposição de águas subterrâneas, conforme defende o geólogo Carlos Eduardo Guaglia Giampiá, integrante do Conselho Estadual de Recursos Hídricos e da diretoria da Associação Brasileira de Água Subterrâneas (Abas).

“O estado sempre ignorou as águas subterrâneas, que respondem por 87% dos estoques de água doce do planeta. Além de não investir nessa nova tecnologia, a Sabesp ainda abandonou poços artesianos produtivos em todo o estado”, diz. De acordo com ele, dois estão no distrito do Anhanguera, na região noroeste da capital, que está na lista dos que mais vão sofrer com a escassez conforme a própria companhia.

O descaso inclui a poluição de partes do aquífero Guarani, um dos maiores do mundo, sobre o qual está boa parte do território paulista, e também a inoperância do Conselho Estadual de Recursos Hídricos, que tem um terço dos integrantes ligados ao governo estadual. “Há cinco anos estou no Conselho, que mal se reúne mesmo diante da crise. Passamos a tomar decisões em bloco antes das reuniões para ver se conseguimos fazer algo, já que as decisões são empurradas com a barriga”, diz Giampiá.

Segundo ele, antes da crise a Sabesp produzia 60 metros cúbicos de água por segundo, mas perdia 25% em razão de vazamentos. Até pouco tempo, o Cantareira era um dos maiores produtores de água do mundo. Formado por seis represas, que utilizam as águas dos rios Atibainha, Cachoeira, Jaguari, Jacareí e Juqueri, interligadas por canais e túneis que somam 48 quilômetros, depois de vencer desníveis. Produzia 30 metros cúbicos por segundo, mas sua vazão caiu pela metade.

Sem conseguir esconder uma crise sem precedentes, Alckmin quis multar a população por aumento no consumo, trocar a gestão da Sabesp e considerar soluções que, infelizmente, não são para amanhã. Furar poço é possível, mas é literalmente tirar água de pedra devido às características do solo paulista. Se a perfuração pegar fraturas nas rochas, encontra água, mas seriam necessários muitos poços. E perfurá-los depende de tempo para os estudos, as licenças e a perfuração.

A transposição das águas do rio Paraíba do Sul para o Cantareira, via rios Jaguari com Atibainha, exigem a construção de 25 quilômetros de adutoras e bombea­mentos, o que não deve ficar pronto antes do segundo semestre de 2016. “Mas os reservatórios estão vazios. Estaríamos ligando o vazio com o esvaziado. Mesmo que se construa ainda para este ano, se não vierem chuvas em quantidade não vai ter água de um lado para transportar para o outro”, diz Zuffo, da Unicamp.

No final do ano passado, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) realizou um seminário para discutir saídas para a crise. Do encontro saiu um conjunto de recomendações, a Carta de São Paulo. A preocupação é com as consequências que vão além dos atuais prejuízos às economias locais e regionais, à produção de energia e de alimentos que logo deverão ser colocados na ponta do lápis por pesquisadores como Tundisi, com financiamento de bancos e outras empresas.

Sem alarmismo, eles consideram o aumento da vulnerabilidade da população, conflitos pelo uso da água e, portanto, o risco socioeconômico. Por isso, recomendam modificações imediatas no sistema de governança de recursos hídricos, com a participação do público num modelo transparente, em que a sociedade possa discutir soluções e não apenas pagar multas. Afinal, trata-se de um problema de todos.

Além disso, defendem investimento imediato em medidas de longo prazo, projetos de saneamento básico e tratamento de esgotos em nível nacional, estadual e municipal, monitoramento de quantidade e qualidade da água, proteção, conservação e recuperação da biodiversidade, reconhecimento e conscientização social da amplitude da crise e capacitação de gestores com visão sistêmica e interdisciplinar. Por enquanto, para evitar o pior que está por vir, só mesmo rezando para que os céus despejem as chuvas que não estão previstas nos relatórios científicos.