Serra da Capivara

História do homem em sítios arqueológicos no Piauí

Um verdadeiro museu arqueológico sob o céu da caatinga revela ao mesmo tempo os desafios da conservação ambiental e de um patrimônio cultural da humanidade

Sucena Shkrada Resk

Inscrições feitas há cerca de 100 mil anos, próximas à Pedra Furada, mudaram a teoria da chegada do homem ao continente americano

Cenas de parto, sexo, dança, caça e da contagem dos dias. As ações se misturam, e o cotidiano do ser humano pré-histórico começa a ser desvendado em pinturas rupestres. As imagens em movimento se repetem em diversas formações rochosas em um vaivém constante. Esse é o cenário encontrado no Parque Nacional da Serra da Capivara, que ocupa extensa área, de 129 mil hectares, com vales e chapadões cinematográficos em parte dos municípios piauienses de São Raimundo Nonato, João Costa, Brejo do Piauí e Coronel José Dias.

Neste pedaço de caatinga, a 530 quilômetros de Teresina e a 300 de Petrolina (PE), centenas de sítios arqueológicos descobertos a partir dos anos 1970 figuram entre os mais importantes das Américas. As datações mais antigas da presença humana chegam a 100 mil anos, segundo levantamentos da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), cogestora da unidade de conservação com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). A área é declarada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) como Patrimônio Cultural da Humanidade desde 1991. E também é tombada pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O desafio maior, no entanto, é a sua conservação.

A Fumdham – uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) – depende de parcerias e apoios por meio de leis de incentivo para dar conta de atividades públicas e da manutenção. Nos últimos tempos, o apoio está escasso, como afirma a diretora da fundação, a arqueóloga Niède Guidon, 81 anos. “Conseguimos ao longo dos anos construir uma boa infra-estrutura, mas com a atual falta de verbas tivemos de diminuir pessoal e passamos a uma estrutura com 11 guaritas para dar conta de toda a unidade de conservação”, diz Niède, que cobra a manutenção permanente por parte do governo federal, já que o parque é nacional. No mês de agosto, foram demitidos 270 funcionários que tinham o papel de proteger e fazer a limpeza nas áreas onde ficam as pinturas rupestres.

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As imagens rupestres se repetem em diversas formações rochosas ao longo da Serra da Capivara

A fonte de receitas para ampliar a capacidade de manutenção do parque, que cabe ao ICMBio, também é flutuante. O chefe do parque, Fernando Tizianel, explica que, além de recursos fixos federais para pessoal de vigilância e administração, a unidade depende de fontes provenientes principalmente de fundos de compensação ambiental, que são irregulares.

No impasse, está em questão a segurança de patrimônios que permitem uma releitura sobre a chegada do homem ao continente. A teoria antes mais difundida era de que grupos asiáticos teriam chegado da Sibéria, na Rússia, até a costa pacífica da América do Norte, pelo Estreito de Bering, há cerca de 15 mil anos, e alcançado o continente sul-americano 11 mil anos atrás. Segundo Niède, com a descoberta de inscrições rupestres onde fica o monumento geológico da Pedra Furada, que indica o povoamento da região há 100 mil anos, surgiu uma nova teoria de que o homem teria chegado da África à América do Sul, pelo Atlântico. Os dados colocam a ciência em constante movimento e aprofundamentos das pesquisas, que estão em curso na fundação.

Formada em História Natural pela Universidade de São Paulo (USP), a pesquisadora se doutorou em Arqueologia Pré-Histórica pela Sorbonne, na França e deu aula em Paris, trazendo seus alunos para missões no Piauí. Em 1993, se instalou definitivamente na região e foi precursora do parque e da Fumdham. Nesse cenário enigmático, a arqueóloga também encontrou fósseis humanos e de animais pré-históricos no entorno, com o apoio de equipes de pesquisadores brasileiros e estrangeiros. Um rico acervo paleontológico com diferentes espécies, como a preguiça-gigante, que pertence à megafauna, integra os laboratórios de pesquisa. Um elo com o nosso passado remoto.

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Patrimônio arqueológico indica que o homem chegou à América pelo Atlântico, vindo da África

Porta de entrada

Para entender esse mosaico de informações arqueológicas, no meio do semiárido, a pesquisadora estruturou o Museu do Homem Americano, localizado em São Raimundo Nonato, que é fundamental visitar antes da região do parque. A instalação com recursos multimídia traça, por meio de audiovisual, exposições de artefatos e réplicas de fósseis, uma amostra do que é encontrado na unidade de conservação, que tem cerca de 20 trilhas e 50 sítios que podem ser visitados somente em companhia de guias cadastrados pela unidade de conservação. Para chegar nesses locais, só de automóvel, moto ou por meio de ônibus fretados, com autorização prévia. E lá dentro, a maior parte da incursão é por meio de caminhadas de baixa a alta intensidade.

No museu, em um grande telão são projetadas diferentes pinturas rupestres da área. As imagens cadenciadas revelam traços de homens e animais. Começa a ser contada a história da vida e dos hábitos do ser humano no continente. Entre as peças expostas no espaço cultural, uma das que mais chamam a atenção é a réplica de um enterro tríplice em uma pequena gruta, onde estão uma criança e dois adultos. A instalação faz parte do conjunto de 23 sepultamentos pré-históricos encontrados na região. Objetos de cerâmica, adorno e machados milenares também integram o acervo.

A incursão parque adentro exige alguns dias, para quem quiser conhecer os diferentes núcleos. Os mais próximos se encontram a cerca de 27 quilômetros de São Raimundo Nonato, pela BR-020. São os núcleos da Toca do Boqueirão da Pedra Furada, do Sítio do Meio e do Boqueirão de Pedro Rodrigues. Nesses trechos foram encontrados os mais antigos registros da presença humana.

Os imensos paredões, avistados por meio de passarelas, exibem em detalhes as inscrições. Com diferentes tamanhos, as pinturas vão se sucedendo nas rochas. Uma das mais famosas é a “cena do beijo”. Nesse museu a céu aberto não é difícil encontrar alguns animais “contemporâneos”, como o mocó. Esse pequeno roedor se esconde nas fendas e deixa seus “rastros” por onde anda, o que exige mais manutenção, para que as pinturas rupestres não sejam comprometidas.

Uma caminhada um pouco mais exigente ao alto dos chapadões leva a uma vista panorâmica das regiões de planície, geralmente secas na maior parte do ano, mas que em época de chuvas (do final da primavera ao final do verão) revelam o cenário verde da caatinga.

Para se chegar lá é necessário passar pelo distrito do Sítio do Mocó, na cidade de Coronel José Dias, onde vive uma comunidade com cerca de 200 habitantes, que tenta ainda se adaptar ao turismo ecológico. Maura Ferreira Paes Landim mantém com o marido uma lojinha de artesanato rústico, onde vendem peças artesanais. “Na década de 70, aqui era praticamente isolado e as pesquisas e a criação do parque ajudaram entender a importância de se proteger essa área, inclusive como fonte de renda.” O filho Nestor também tem na atividade de guia autônomo do parque uma maneira de ganhar a vida fazendo o que gosta.

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Niède: verba pequena e funcionários de menos

Já no povoado de Barreirinha se destaca o esforço empreendedor de cerca de 30 trabalhadores da Cerâmica Serra da Capivara, que mantém loja no local e atende encomendas de grandes lojas da região e internacionais. Todo o processo de produção das peças pode ser acompanhado e tem como característica especial diferentes desenhos das inscrições rupestres do parque. Cada trabalhador exibe a sua destreza em uma parte da confecção, que tenta seguir princípios ecológicos, evitando desperdícios. Uma dessas etapas é mostrada pelo torneiro Jozias Pereira Paes Lima, 34 anos, ao delinear o formato das peças manualmente.

Neste roteiro, é indispensável também conhecer onde tudo teve início, com a professora Niède Guidon, em 1970. O trecho se chama Toca do Boqueirão do Paraguaio, que fica a 40 quilômetros de São Raimundo Nonato, também pela BR-020, no Desfiladeiro da Capivara. Por lá, ainda há muito chão a percorrer, nas Tocas da Entrada do Pajaú, do Inferno, que é uma grande gruta escondida entre paredões, e a do Baixão da Vaca, entre outras. De certa forma, simula os caminhos percorridos pelos homens primitivos.

Em outro sentido da BR-020, mais um núcleo interessante é o Sítio Vermelho, que fica no lado oposto ao da Pedra Furada. Um relevo diferenciado se apresenta com um detalhe a mais. Ocorre diariamente um espetáculo da natureza, por volta das 17h: neste trecho conhecido por Baixão das Andorinhas, as aves fazem voos sincronizados pelo cânion entre as elevações montanhosas. Parar e concentrar o olhar nessas cenas, que são ritmadas e geralmente acompanhadas pelo pôr do sol, torna a experiência ainda mais envolvente.

O Parque Nacional da Serra da Capivara é essa caixa de surpresas arqueológicas e ambientais, revelando um semiárido rico e ainda pouco conhecido, que recebe anualmente cerca de 20 mil visitantes. Com a abertura em curso do aeroporto de pequeno porte da cidade de São Raimundo Nonato, reivindicado há muitos anos pela pesquisadora, talvez essa projeção possa aumentar. Essa é a expectativa da arqueóloga, que luta, há décadas, pela instalação de melhores vias de acesso e instalações para possibilitar o turismo sustentável na região.

Mais informações sobre a unidade de conservação podem ser encontradas no site: www.fumdham.org.br

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