Saúde

O uso de cannabis em tratamentos e os dilemas sobre o cultivo

Efeitos terapêuticos comprovados de um lado, leis contraditórias e moralismos de outro, barram a necessária discussão sobre o uso da erva para fins diversos

Pete Starman / Getty Images

Afinal, a Cannabis sativa é ou não uma boa droga? Ainda aprisionada em uma redoma de argumentos morais, ideológicos e, às vezes, técnicos, a discussão sobre a maconha está novamente povoando corações e mentes desde o início do ano, quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) decidiu reclassificar um dos componentes da planta – o canabidiol ou CBD – da categoria das substâncias proibidas para a categoria dos medicamentos de uso controlado. A decisão atendeu a uma antiga reivindicação de pacientes que encontraram na substância algum alívio para problemas como epilepsia, espasmos e mal estar pós-quimioterápico, entre outros, mas eram obrigados a importar o produto de forma legal.

Paralelamente, no Rio de Janeiro, uma série de prisões de pessoas que foram flagradas cultivando pés de maconha em suas residências reacendeu o debate sobre a legalidade do cultivo para consumo próprio e as incongruências das políticas públicas de combate ao tráfico de drogas. Na opinião de muitos consumidores, plantar a erva em casa é uma forma de não alimentar a cadeia econômica do tráfico de drogas armado, mas essa iniciativa ainda esbarra na atual Lei de Drogas, que dá brechas para que, uma vez flagrados, os plantadores caseiros sejam autuados como traficantes.

O primeiro caso de prisão no Rio aconteceu em 29 de janeiro, com um casal de professores no bairro Humaitá, zona sul da cidade. Temendo a invasão de sua casa por ladrões, eles telefonaram para pedir socorro à Polícia Militar. Os policiais, quando chegaram, não encontraram nenhum ladrão, mas depararam com 50 pés de maconha plantados no jardim. Levado para a delegacia, onde foi autuado por tráfico de drogas, o homem, que é doutor em biofísica e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), alegou em vão que a produção serviria apenas para consumo próprio.

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Manifestantes participam da Marcha da Maconha, em São Paulo: debate urgente e necessário

Naquele mesmo dia aconteceu o segundo caso de prisão, efetuada pela PM em uma casa no Alto da Boa Vista, trecho próximo à Floresta da Tijuca, no local com o sugestivo nome de Estrada da Paz. Desta vez, após denúncia anônima, foram encontrados 19 pés de maconha no jardim, além de 44 mudas plantadas em vasos dentro de uma estufa montada no armário da casa de um homem de 30 anos, formado em Administração. Embora tenha declarado que plantava para consumo próprio, ele também foi levado à delegacia, autuado por tráfico e encaminhado ao Complexo Penitenciário de Gericinó, na zona oeste.

“Lei estúpida”

Em 22 de fevereiro, um terceiro caso jogou mais lenha na fogueira. No município fluminense de Miguel Pereira, um músico de 28 anos, denunciado pela própria sogra, foi pego em flagrante com quatro pés de maconha em casa e, assim como os antecessores, foi preso e autuado por tráfico de drogas, apesar de se declarar apenas usuário. A diferença é que este plantador caseiro resolveu revelar sua identidade. André Teixeira Leite, o MC Cert, é vocalista da banda Cone Crew Diretoria, e aproveitou sua popularidade para levantar a discussão: “Nós repudiamos o tráfico de drogas, a ineficiente política de tratamento aos viciados e principalmente a prisão de usuários. Hoje fomos vítimas dessa lei antiga, estúpida e ineficaz, igual a quase todas as demais existentes no Brasil”, diz a banda, em nota pública.

Mesmo que não seja ineficaz, a atual Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) é contraditória no que diz respeito a pessoas que plantam maconha para consumo próprio. Em seu artigo 28, a lei determina que “a quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependências físicas ou psíquicas serão aplicadas medidas como advertência sobre o perigo do uso de drogas, prestação de serviços comunitários e/ou comparecimento a cursos educativos”.

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PLANTADOR CASEIRO MC Cert (esq.): “Hoje fomos vítimas dessa lei antiga, estúpida e ineficaz, igual a quase todas as demais existentes no Brasil”

Já o artigo 33 da mesma lei, ao tratar de tráfico, diz que “incorre nas penas de reclusão de cinco a 15 anos de prisão quem semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas”. Na prática, com essa dupla leitura da lei, o enquadramento do “criminoso” depende única e exclusivamente do julgamento subjetivo dos policiais que efetuam a apreensão ou prisão.

“Política de avestruz”

Para a socióloga Julita Lemgruber, a sociedade brasileira precisa abrir definitivamente o debate sobre a Lei de Drogas. “Esses usuários estão querendo plantar sua própria maconha e não procurar um fornecedor, não ser peça de uma engrenagem criminosa, afinal a comercialização da maconha está criminalizada. O Brasil insiste numa política de avestruz, de não querer ver a realidade que está à sua frente”, diz.

Na avaliação da socióloga, o Brasil está “perdendo o trem da história” no que diz respeito à legislação sobre drogas. “É tão óbvio isso, é só a gente olhar para o que os países vizinhos estão fazendo. Veja o exemplo do Uruguai, onde a maconha foi legalizada inteiramente. Mesmo na Argentina, que em grande medida tem uma política também repressiva, o uso de drogas já está descriminalizado há muito tempo e as pessoas podem ter até quatro plantas em casa. Há vários países que estão aceitando não só essa ideia dos clubes canábicos como também que é evidente que se essa questão for olhada de um determinado ponto de vista, veremos que não é a droga em si que gera violência, mas a forma como a gente quer lidar legalmente com a questão.”

Integrante da organização internacional Leap (Law Enforcement Against Prohibition), formada por agentes da lei de diversos países que defendem a legalização da produção, comércio e consumo de todas as drogas como um marco para resolver os problemas ligados à violência do tráfico, o delegado Orlando Zaccone, da Polícia Civil do Rio de Janeiro, diz que a distinção entre traficante e usuário é uma construção política. “Já houve momentos da legislação brasileira em que o usuário não respondia por crime nenhum, já houve momentos em que ele respondia pelo mesmo crime do traficante, e hoje você tem uma distinção que dá tratamento médico ao usuário e tratamento criminal ao traficante. Na verdade, isso tudo é uma construção política, porque do ponto de vista da natureza não existe nenhuma distinção entre a conduta do traficante e a do usuário.”

Conceito de crime

Essa subjetividade, avalia o delegado, permite ações como as recentes prisões de plantadores caseiros de maconha. “Se a pessoa tem dez pés de maconha em casa com o objetivo de venda ou se tem para consumo próprio, do ponto de vista da natureza está fazendo a mesma coisa, que é guardar dez pés de maconha. Quem vai dizer que aquele que tem a maconha para venda é um criminoso hediondo e aquele que tem para uso próprio é um doente que precisa de tratamento é a lei, que é uma construção política. Quem define o que é crime e quais são as condutas criminosas é o Congresso Nacional”, afirma Zaccone.

Militante da descriminalização das drogas e principal organizador da Marcha da Maconha, o vereador Renato Cinco (Psol-RJ) faz um pedido público pela liberação daqueles plantadores caseiros que foram presos. “Defendo a libertação de todos os presos políticos da guerra às drogas, especialmente aqueles que estão indevidamente enquadrados na lei. O usuário que faz o autocultivo não pode passar nem um dia preso, tem que assinar o termo circunstanciado e ser liberado ainda na delegacia”, diz.

“Algumas pessoas, com o objetivo de se afastar do mercado ilegal de drogas, de não colaborar financeiramente com o comércio das drogas, vêm optando pelo autocultivo da maconha. A lei brasileira de 2006, em seu artigo 28, estabelece que quem faz cultivo de substância ilícita para uso próprio incorre nas mesmas penalidades do usuário. No entanto, temos observado o empenho da polícia, que gasta recursos para perseguir os usuários que fazem o plantio da sua maconha. No momento, nós temos pelo menos cinco pessoas presas no Rio de Janeiro, acusadas indevidamente de tráfico de drogas porque estavam produzindo a própria maconha. Não sabemos de onde saiu essa prioridade”, acrescenta o parlamentar.

Uma das pessoas a quem Cinco se refere é o ativista Flávio Dilan, o Cabelo, que está preso desde fevereiro após a polícia ter encontrado 39 pés de maconha em sua casa no município de Petrópolis, na região serrana do Rio. A prisão de Cabelo, que é ex-dirigente do movimento estudantil e muito conhecido na esquerda carioca, também tem impulsionado a retomada da discussão sobre o plantio de maconha para uso próprio. Com mais um ingrediente: Cabelo, que sofre de epilepsia, afirma fazer uso das plantas para produzir o óleo da Cannabis que ajuda a impedir suas crises. Neste óleo está o canabidiol, liberado pela Anvisa, e outras dezenas de substâncias ainda ignoradas pela agência reguladora.

“Queremos a regulamentação do uso medicinal da maconha, como acontece em diversos países, para que as pessoas tenham acesso à planta como um todo e a um tratamento fitoterápico completo que envolve a utilização de dezenas de princípios ativos e não apenas de um princípio ativo”, diz Cinco, ressaltando que, mesmo tendo sua importação liberada, o canabidiol (ou CBD) ainda é muito caro.

Potencialidades

A discussão sobre a possibilidade de ir além da liberação para uso medicinal de uma única substância presente na maconha também já está em pauta entre médicos e cientistas. Para o biomédico Renato Filev, que é pesquisador da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde estuda o papel funcional e terapêutico do sistema canabinóide nos transtornos mentais, e membro do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos, afirma que o ideal seria que se utilizasse as “diversas potencialidades” da Cannabis. “Há indicativos de que os componentes utilizados em conjunto tenham melhores resultados. É para este estudo mais amplo que devemos caminhar”, diz.

Um dos pioneiros no Brasil nos estudos sobre as diversas aplicações medicinais da Cannabis, realizados desde 1978, o médico Elisaldo Carlini, ex-presidente da Anvisa, é outro a considerar a liberação do CBD uma medida restrita. O veterano de 84 anos, no entanto, afirma que a decisão da Anvisa é importante por abrir espaço para maiores avanços: “Não se trata mais de sensibilizar, mas sim de criar um ambiente para a produção da maconha medicinal, para fins de pesquisa, no Brasil”.

Marcelo Casal Jr
Polêmica sobre cultivo e uso da cannabis já está na pauta da sociedade brasileira

As restrições de acesso ao canabidiol, mesmo liberado, tornam inevitável que essa discussão seja associada à polêmica sobre o plantio residencial de maconha para consumo próprio. “As recentes decisões da Anvisa e do Conselho Federal de Medicina mostram como a maconha ainda é vista pela nossa sociedade e por nossos médicos como um tabu. A decisão do CFM é limitada àquilo que a grande imprensa quis sensibilizar”, comenta Filev.

Julita Lemgruber diz que a liberação do CBD “aconteceu após a mídia dar uma visibilidade muito grande à questão da epilepsia refratária, graças às crianças que apareceram no filme Ilegal”. Para ela, a discussão centrada no CBD, no entanto, é insuficiente: “Há moléstias que não se tratam só com CBD, se tratam também com o THC (tetraidrocanabinol, principal princípio ativo da maconha). Então, sem dúvida nenhuma a Anvisa vai ter que muito em breve rever a sua decisão, porque senão a gente vai tapar o sol com a peneira. As coisas só valem para crianças que têm epilepsia refratária? E as outras moléstias? E o pessoal que faz quimioterapia e precisa dar conta de todos os distúrbios provocados por ela? E o pessoal que têm esclerose múltipla, que tem fibromialgia? Há uma série de moléstias para as quais o uso do CBD puro não vai resolver”, argumenta.

Para Orlando Zaccone, a questão da descriminalização está também na raiz da discussão sobre a utilização medicinal da maconha. “Se tivessem sido regulamentados produção, comércio e consumo da Cannabis, a questão do uso do canabidiol estaria resolvida. Sem contar que aí a gente observa um problema de mercado porque, embora se autorize a importação desses medicamentos à base de canabidiol, ainda não há a regulamentação da produção do canabidiol no Brasil. Obrigatoriamente nós temos que importar, dando incentivo à indústria estrangeira em detrimento da indústria nacional.”