literatura

Nascer aos 51, e conquistar o olhar cuidadoso ao redor

Livro relata a transformação de João em Joicy, desconstrói conceito de feminilidade e reflete sobre limites técnicos e humanos do jornalismo

Rodrigo Lobo/JC Imagem

Seria muito legal dizer que a vida dela está muito melhor, mas não é exatamente assim.

“Joicy Melo da Silva nasceu no dia 22 de novembro de 2010, às 12h30. Pesava 74 quilos e media 1,63 metro de altura. Naquele dia, mais sete partos foram realizados no Hospital das Clínicas, na Cidade Universitária, Recife. Quando Joicy nasceu, morreu João Batista, 51 anos, filho de Irene (83, viva) e de Eupídio Luiz (77, enterrado).” É esta a história que Fabiana Moraes conta na série de reportagens O Nascimento de Joicy, publicada em 2011 no Jornal do Commercio de Recife, nas versões impressa e on-line. Vencedora do prêmio Esso de jornalismo, suas reportagens acabam de virar um livro homônimo pela Arquipélago Editorial (248 págs., R$ 35,90).

A repórter acompanhou durante quase seis meses a transformação do agricultor João Batista na cabeleireira Joicy Melo, desde antes de passar pela cirurgia de
redesignação sexual feita pelo Sistema Único de Saúde (SUS) até o fim do processo. Depois de sete anos de idas e vindas ao Hospital das Clínicas de Recife, aos 51 a mulher que tinha nascido João finalmente deixaria para trás o agricultor que sempre foi: no lugar do “inadequado” pênis, ela passaria a ter uma vagina.

Mas se a redesignação sexual por si só já é complexa em vários sentidos – físico, social e emocional, para citar apenas três –, que dirá para um agricultor muito pobre, morador de uma cidade com menos de 14 mil habitantes no interior de Pernambuco e que, mesmo se sabendo mulher, não se encaixa no estereótipo da imagem do feminino construída socialmente? Ela não usa batom, roupas delicadas, cabelo comprido nem brincos exuberantes. Seu estilo não vai muito além de bermudas, blusinhas justas, chinelos e o cabelo – já ralo – curto.

Joicy era a próxima da fila da cirurgia de mudança de sexo quando Fabiana começou a fazer a reportagem. “Porém, estava longe de corresponder à imagem de mulher que se costuma cultivar. Teria sido possível aguardar e eleger alguém mais enquadrada no cânone da feminilidade. Pelo contrário, insistir em Joicy significava enfrentar o preconceito mais arraigado e mostrar o drama de quem, ademais de viver em situação de extrema pobreza, ‘tenta se inscrever no mundo a partir de um corpo continuamente questionado — e combatido’”, afirma, no prefácio, a jornalista e doutora em Serviço Social Sylvia Moretzsohn.

“No nosso primeiro contato, quando ela está na fila de mulheres trans esperando atendimento, eu achei que ela estava acompanhando outra mulher. É muito difícil quando a gente está totalmente condicionada a um tipo de pessoa no mundo, um tipo de representação… Ela levantou a mão e disse: ‘Eu sou a próxima’. Então, a chamei para conversar. Quando fui falar com o médico que faria a cirurgia dela, ele disse: ‘Por que você não escolhe uma transexual melhor? Você escolheu a pior que tinha, a menos feminina, muito masculinizada. A gente mesmo pensou muito se ia fazer a cirurgia ou não, porque ela não se adequa’.” A palavra “adequa” ficou ecoando na cabeça de Fabiana. “É uma palavra violenta! Em vez de me desencorajar, o cirurgião terminou me instigando ainda mais: afinal, pensei, o que exatamente nos transforma em mulheres? Brincos, batom, vestidos?”, questiona a repórter na introdução do livro.

Fabiana registra os enormes obstáculos que Joicy teve de passar para ser reconhecida como mulher: a falta de dinheiro, de respeito e de amor, além do atendimento nem sempre humano oferecido pelo sistema de saúde. “Se dentro de um âmbito de pessoas que lidam com o outro, como jornalistas e o próprio médico cirurgião, disseram que ela não era mulher, como eu vou cobrar de um enfermeiro que trabalha 24 horas por um salário X e sem capacitação, que ele tenha esse entendimento tão profundo de que está lidando com o João que é uma Joicy?”, reflete.

Corpo sofrido e revolucionário

Em O Nascimento de Joicy, a repórter descreve a dor, o suor, o assombro e a alegria de produzir a reportagem e expõe sem reservas a complicada relação com seu personagem. O livro está dividido em três partes: a primeira reproduz  as reportagens; a segunda atualiza informações e conta como foi a produção da série, os encontros e os conflitos entre Joicy e a repórter; na terceira, Fabiana faz uma reflexão sobre a relação entre jornalista e personagem e apresenta o conceito de jornalismo de subjetividade, em que defende um olhar mais profundo em relação ao mundo e aos seres humanos.

Por isso, é um livro corajoso: ao mesmo tempo em que debate uma questão de saúde pública complexa como a transexualidade, a obra também questiona o espaço da objetividade no jornalismo. Fabiana tem a coragem de expor sua relação profissional e pessoal com Joicy, uma mulher de personalidade forte, difícil e calejada pela vida dura que sempre levou. Seu relato, portanto, não aponta vítimas e nem vilões.

“Com a reportagem e depois o livro, Joicy ficou conhecida nacionalmente, ganhou atenção. Mas essa atenção não é algo perene. Eu tentei que essa visibilidade fosse a mais respeitosa e a mais integral possível, que fosse um olhar descondicionante sobre ela e sobre outras trans e isso traz de fato uma mudança. Só que como Joicy vem de um ambiente muito precário, essa questão humana/filosófica às vezes passa meio reto por ela, que precisa de coisas mais urgentes, digamos assim. Foi por isso que, muitas vezes, eu e ela chegamos a esses embates”, afirma a jornalista.

Se o livro mudou a vida da cabeleireira e agricultora Joicy Melo? De forma prática, Fabiana diz que não: “Seria muito legal dizer que a vida dela está muito melhor, mas não é exatamente assim. Acho que agora ela tem um olhar mais respeitoso das pessoas. Quando as pessoas do bairro, da comunidade, perceberam a atenção que ela estava recebendo, passaram a olhar para ela com um pouco mais de cuidado”.