Crônica

Os sobreviventes daquele julho de 1950

Ghiggia e Barbosa viveram e morreram de forma humilde, sem o glamour dos tempos modernos. Mas protagonizaram o maior dos silêncios que um estádio de futebol já escutou

Ilustração/Mendonça

O ex-presidente do Uruguai José Mujica, agora senador, tinha 15 anos quando a Celeste Olímpica, como é conhecida a seleção de seu país, disputava a Copa do Mundo de 1950. A um portal de Montevidéu, ele contou recentemente que escutou a partida final por um velho aparelho, e durante o jogo “estava pouco menos que metido dentro do rádio”. Era 16 de julho. Estavam em campo o Uruguai, campeão em 1930, e o Brasil, que ainda não era o país do futebol e precisava apenas de um empate para ganhar o seu primeiro título mundial.

A história todo mundo conhece. A seleção brasileira fez 1 a 0, o Uruguai virou e tornou-se bi, calando 200 mil pessoas no recém-construído Maracanã, no nosso maior trauma esportivo e social, de um certo ponto de vista, em um país ainda em formação. Pelo menos até a Copa do ano passado, novamente disputada no Brasil, quando a Alemanha fez aqueles inesquecíveis 7 a 1.

Mas o jogo de 1950, nunca olvidado, voltou a ser lembrado por uma coincidência histórica: Ghiggia, atacante que fez o segundo gol uruguaio, morreu exatamente em 16 de julho, 65 anos depois do duelo do Maracanã, quando se decidiu que o Brasil nunca mais usaria camisa branca. Justamente o último atleta uruguaio vivo daquele time, Alcides Ghiggia tinha 88 anos. Cunhou uma frase célebre: “Apenas três pessoas calaram o Maracanã: o papa, Frank Sinatra e eu”.

O goleiro brasileiro, Barbosa, é dono de outra frase marcante, ao lembrar que a pena máxima no Brasil é de 30 anos, mas ele cumpria sentença “perpétua” por causa daquele gol. Moacyr Barbosa morreu em 2000, aos 79 anos. Pois sua filha “de adoção”, Tereza Borba, contou que esses dois personagens do futebol e da história de seus países, que marcaram para o bem e para o mal, eram amigos. E se visitaram algumas vezes, no Rio e em Montevidéu.

O futebol e a vida mostram suas faces. Antes do jogo decisivo, dirigentes do Uruguai foram embora e largaram os jogadores à própria sorte. No dia seguinte, os atletas eram heróis. Mas também se impressionavam com a tristeza dos brasileiros. O capitão da Celeste, Obdulio Varela, conta que saiu à noite para beber, sem ser reconhecido, e testemunhou o impacto daquele jogo nas pessoas. A seleção uruguaia se hospedou em um hotel que existe até hoje, no bairro do Flamengo, zona sul do Rio.

Tempos em que o futebol era modesto fora de campo, sem o peso econômico de hoje, mas grande no gramado.

Já Barbosa foi escolhido como um dos vilões, talvez o principal. Antes do jogo, as autoridades brasileiras praticamente davam o título ao Brasil. Sua filha conta que, no final da vida, ele estava razoavelmente reconciliado com o passado, apesar do abatimento com a derrota.

Pepe Mujica lembra de ter saído às ruas como um doido para comemorar. “Talvez quando se foi a ditadura, mas nunca vi tanta alegria resumida em um povo”, diz, sobre a festa em 1950.

A final foi tema de livros, como o marcante Anatomia de uma Derrota, de Paulo Perdigão – que inspirou um curta de Jorge Furtado, Barbosa, em 1988, quando o personagem vivido por Antônio Fagundes, um menino que viu o jogo, volta no tempo para tentar impedir o desfecho. Ou documentários, como o recente Maracaná, lançado em 2014 pelos uruguaios Sebastián Bednarik e Andrés Varela. O escritor Eduardo Galeano também narrou a epopeia de 1950.

Ghiggia e Barbosa, personagens da história, viveram e morreram de forma humilde. Sem o glamour dos tempos modernos. Mas protagonizaram o maior dos silêncios que um estádio de futebol já escutou. Tereza disse que o uruguaio será muito bem recebido pelo brasileiro. No céu, “onde vão jogar pelada”.