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Devagar e mais rápido: o transporte urbano e a vida

Menos acidentes, mais fluidez e menor emissão de poluentes promovem um novo debate a partir da redução de velocidade nas vias de cidades como São Paulo. Em discussão, a cultura do automóvel

PAULO PEPE/RBA

Alguns passaram a pedalar; outros, como Michel Thalenberg, combinam longas caminhadas e metrô

A redução de velocidade nas marginais e outras vias estruturais da cidade de São Paulo provocou debate entre candidatos a prefeito neste ano. Mas segundo técnicos e especialistas, dificilmente algum candidato encontrará argumentos ou informações para sustentar o retorno às velocidades mais altas. O pré-candidato do PSDB João Doria Júnior andou se pautando por essa promessa como primeira medida de governo.

Segundo o coordenador do Laboratório de Gestão da Inovação (LGI) da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), Mario Sergio Salerno, a promessa do empresário tucano não tem fundamento. “Esses caras que são pseudotecnocratas ficam reclamando de políticos, mas na hora de pensar uma medida pensa por ele, que quer pegar o carro e andar mais rápido. Se for assim, eu gostaria de ter um helicóptero e não tenho. Não faz sentido.”

A redução vem sendo acompanhada de bons resultados em diferentes cidades no mundo, não apenas com menos acidentes e maior fluidez, mas também na questão ambiental, com menos emissão de poluentes. Salerno lembra que em Paris há vias importantes que admitem a velocidade de até 30 quilômetros por hora, e que em algumas a prefeitura fez mudanças de sentido justamente para dificultar o trânsito de automóveis. “São mudanças que dizem claramente para o cidadão não usar o carro.”

Em São Paulo, o número de acidentes registrados em outubro de 2015 diminuiu em 36% na comparação com igual mês no ano anterior. E os congestionamentos, em 10%. Os debates na corrida eleitoral, no entanto, acabam confrontando culturas. Sobretudo em relação ao conceito tradicional do uso do automóvel – ao mesmo tempo um objeto de desejo, que teve a cidade construída em função dele desde meados no século passado, mas com o fluxo a cada ano mais difícil em razão do excesso de veículos.

“As mudanças com os corredores e faixas de ônibus, a construção de ciclovias e toda essa estrutura vão chamar a atenção para a melhoria da qualidade do transporte. A cultura do automóvel vem se perdendo mundialmente”, afirma o consultor em planejamento de transporte Marcelo Blumenfeld, doutorando da Universidade de Birmingham, na Inglaterra.

Para ele, é expressivo o fato de parte da classe média paulistana já ter deixado o carro em casa para se deslocar por outra opção, como o metrô, conforme mostrou em setembro último a 9ª Pesquisa sobre Mobilidade Urbana, feita pelo Ibope. O percentual de motoristas que têm carros e os usam todos os dias caiu de 56% para 45% de 2014 para 2015.

Longo caminho

Integrante desse grupo que trocou o automóvel pelo transporte público, o administrador de empresas Michel Thalenberg, 53 anos, diz que inicialmente foi motivado por questão econômica. Thalenberg mora no bairro do Paraíso (zona sul), a 500 metros da estação Brigadeiro do metrô, e trabalha no Pari, região central.

“O valor do estacionamento perto do trabalho aumenta todo ano em novembro, em taxa sempre superior ao meu aumento salarial”, afirma. Ao mesmo tempo em que se viu pressionado por esse custo, o administrador percebeu que poderia compor o metrô com caminhadas para se deslocar ao trabalho, e que isso representaria um hábito mais saudável para sua rotina.

Desde novembro de 2014, Thalenberg caminha dez quilômetros por dia entre ir e voltar do trabalho, e desembarca do metrô ou na estação Vergueiro ou na estação Consolação para cumprir sua meta. Sempre monitorado por um aplicativo contador de passos, ele conta que já perdeu sete quilos, e que se sente melhor longe do estresse dos congestionamentos e, mais recentemente, “da frustração de ter de andar a 50 por hora”, ironiza, defendendo que o padrão de velocidade poderia ser de 60 quilômetros.

“Em todas as grandes cidades no mundo que têm passado por um processo não só de controle do limite de velocidade, mas de sua redução, essas medidas causaram um choque cultural muito profundo, sobretudo no pressuposto que as pessoas sempre tiveram de que as vias da cidade são para os veículos circularem”, diz o sociólogo Eduardo Biavati, consultor em segurança no trânsito, destacando que segundo a visão tradicional é papel do poder público garantir que essas vias sejam as mais perfeitas, livres, para que o trânsito possa fluir no menor tempo possível. “E isso implicava a visão de que quanto mais livres as vias, maior a velocidade também.”

Durante décadas, a expectativa dos cidadãos motorizados era de que o poder público, recolhendo os impostos, tinha por obrigação garantir a fluidez a quem comprou seu carro. “E quando hoje as prefeituras falam que o carro não vai poder andar a qualquer velocidade, e também não vai poder ser estacionado nas ruas da cidade, isso é um choque, porque não era assim. Você comprava um carro, e era supernatural que você pudesse estacioná-lo ao longo do meio-fio para ir a uma loja, por exemplo. Ninguém questionava que isso era um direito. E ninguém questionava que o carro estacionado ocupa uma via que é de todos”, diz Biavati.

O motorista de táxi Marco Antonio da Cruz, de 50 anos e há 18 trabalhando no setor de transporte, afirma que a prefeitura de São Paulo deveria adotar uma velocidade só, de 50 quilômetros por hora, para toda a cidade, com exceção das vias expressas das marginais. “Entendo que a medida reduziu os acidentes, mas a velocidade poderia ser maior nas vias expressas”, diz Marco Antonio. Ele também afirma que os passageiros têm reclamado bastante da medida da prefeitura, mas ele próprio pondera que isso é mais um desabafo impensado dos clientes, “que estão sempre atrasados”, do que um raciocínio lógico. O motorista destaca que não chegou a perceber uma mudança sensível no seu dia a dia, mas que alguns companheiros de profissão, “já com a paciência esgotada quanto aos congestionamentos”, têm preferido partir para outros ramos de atividade.

“O fato é que tem gente percebendo que a paixão pelo automóvel é perda de tempo e perda monetária. Isso, no entanto, não impede que o carro mantenha usos específicos, pois há momentos ou situações em que ele é a melhor opção”, pondera Blumenfeld, para quem a percepção das mudanças do conceito de mobilidade pela indústria automobilística são essenciais para sua sobrevivência. “As campanhas publicitárias se tornam cada vez mais enfáticas porque é um grito de desespero”, afirma. Além disso, Blumenfeld diz que as constantes pressões da indústria sobre o governo para reduzir o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) “são sinal de que existe essa mudança cultural em curso”. Para responder a isso, acrescenta, “a indústria vem fazendo projetos que procuram trazer mais sustentabilidade ao automóvel”.

Quanto mais as pessoas ficam alertas sobre os malefícios do carro, a indústria vai mudando os modelos, que ficam mais leves, menores, destaca Blumenfeld. “Há também a questão dos automóveis compartilhados, mas a verdade é que ou eles mudam, ou eles morrem, apesar de o carro se manter como um modal de transporte. Eu não sou contra o automóvel, mas dentro da cidade seu uso está ficando complicado.”

RIVALDO GOMES/FOLHAPRESS e RAFAEL NEDDERMEYER/ FOTOS PÚBLICASruas
Em São Paulo, carro perde espaço e velocidade. Ônibus e bicicletas estão em alta em corredores e ciclovias

Novas tecnologias

Uma das mudanças mais radicais que o mundo do automóvel promete para as próximas décadas é a tecnologia de automatização da direção, que dispensa o motorista. Não é apenas o Google que atua nessa corrida, embora seus protótipos sejam os mais conhecidos. Há pouco tempo, a General Motors reforçou seu protagonismo nessa área, e anunciou investimento de US$ 500 milhões em uma empresa chamada Lyft, voltada ao compartilhamento de veículos, para desenvolver uma alternativa de veículo autônomo.

Blumenfeld faz uma analogia com os computadores para explicar o desenvolvimento do veículo autônomo, em que cada empresa desenvolve sua solução, mas todas têm de conversar entre si, observando os mesmos parâmetros de segurança. Ele diz também que os sistemas já podem ser considerados robustos, mas reconhece que ainda há desafios nessa ideia que surgiu nos anos 1970. Um desses desafios está em viabilizar a convivência, nas ruas, entre os carros autônomos e os tradicionais. “A interação fica complexa porque o carro automatizado é mais seguro e responde melhor”, diz.

Outro desafio, segundo o pesquisador, está nas tecnologias de sensores para o reconhecimento de obstáculos ao longo da via. “Esses carros reconhecem os outros carros, mas nem sempre reconhecem todos os obstáculos, e alguns ainda não reconhecem as bicicletas”, afirma, destacando que o reconhecimento de todo o cenário envolvido em um deslocamento compõe um ambiente complexo que ainda desafia a tecnologia.

Já para o professor Salerno, da Politécnica da USP, o custo do carro sem motorista é proibitivo. Ele também não acredita que o automóvel ficará muito diferente do que é hoje pelas próximas duas ou três décadas. “Eu não vejo mudança enquanto a minha neta estiver viva, ou seja, não é algo para as próximas décadas. Mesmo a experiência de veículos como o do Google ainda são muito limitadas. A solução é caríssima, pode até ter caído um pouco o preço, mas o sensor de posicionamento dele custava US$ 100 mil. Tudo bem que é legal para você desenvolver tecnologia, mas não é um produto de massa”, diz.

Mas antes da popularização da tecnologia de deslocamento autônomo, o carro tende a se tornar uma plataforma de convergência de tecnologia digital, o que é uma mudança considerável em relação ao conceito atual, pode ensejar diferentes usos.

“O que muda no automóvel é a tecnologia com mais integração de informações, internet das coisas, e também se vai vingar o motor elétrico ou não. O produto carro vai ser uma coisa muito mais conectada, com comando de voz, com essa integração pela internet, você pode buscar destinos em interação com a rede. Por exemplo, se quero comprar uma TV, peço ao veículo para indicar onde tem aquela TV mais barata, mas a concepção básica do automóvel ainda vai permanecer por muito tempo. Não vejo no horizonte o abandono do transporte individual de pequena capacidade. O que eu vejo é uma menor utilização diurna dos automóveis em grandes metrópoles”, afirma Salerno.

Para o consultor Eduardo Biavati, “o que está cada vez mais claro para o mundo é que as montadoras vão se tornar provedoras de serviços, mesmo que sejam menos veículos vendidos. Essa é uma das questões em discussão, mas ninguém sabe ainda para onde vai isso, se vai ser realmente bom ou não, mas (do ponto de vista mecânico) os carros devem ser mais simples, ter menos componentes, como o carro elétrico, mas ao mesmo tempo os veículos vão prestar mais serviços. É mais ou menos como a Apple fez com os computadores”, avalia.

“As máquinas são caras, mas os aplicativos continuam sendo muito baratos. Então, a Apple vende serviços por meio dos aparelhos que fabrica. É uma mudança de padrão tecnológico gigantesca, que está em torno de uma grande disputa. A indústria de software, a indústria automotiva mundial, as companhias telefônicas, provedores de dados, na verdade, não estarão tão interessados que você compre o carro, mas querem saber por onde cada um anda, querem ter acesso integral ao volume de dados que você vai produzir usando um carro.”
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Rafael Marques: vilão não é o carro, é a concentração

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A economia mundial ainda precisa do automóvel como puxador do PIB. No caso dos Estados Unidos, representa 11%. Aqui, é 5%

Apesar do trânsito caótico decorrente da falta de espaço para tantos veículos trafegarem ao mesmo tempo, o carro não deve ser visto como o maior vilão da mobilidade urbana. A opinião é do presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Rafael Marques, para quem a indústria automobilística ainda tem muito espaço para crescer no Brasil. Rafael observa que mais da metade dos domicílios do país não têm automóvel, enquanto na Alemanha a relação é um por um, e não se tem notícias de graves problemas de mobilidade.

O sindicalista considera que a longevidade do mercado em torno do setor automobilístico passa por uma política de renovação da frota de veículos – a exemplo do que ocorre em países como Estados Unidos e Japão – e pela continuidade das políticas de distribuição de renda e de inclusão social, para que o carro comece a chegar aonde não chegou. Ele cita pesquisas em que 83% dos brasileiros têm o carro como objeto de desejo, considera que soluções para a mobilidade devem ter como objetivo contemplar a liberdade das pessoas de escolher como se deslocar e defende medidas mais efetivas nos “arcos de desenvolvimento” nas regiões periféricas, para que as pessoas encontrem condições de trabalhar e estudar mais perto de onde vivem.

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