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Marco legal da inovação é alento para o mundo da pesquisa

Reivindicação antiga de cientistas, um regime diferenciado de contratações de serviços e o fim da burocracia em importações estão no código sancionado por Dilma

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No Brasil, mais de 80% da pesquisa é realizada por universidades públicas, especialmente as federais

Essencial para a visualização de moléculas de células vivas no diagnóstico de doenças e com aplicação em todo o campo científico, o microscópio de f­luorescência não é fabricado no Brasil. Sua importação pode levar mais de oito meses, atrasando o trabalho de médicos, biólogos, físicos, geólogos e outros especialistas. A demora entre a compra e o recebimento é um problema grave porque praticamente todos os insumos e equipamentos usados nos nossos laboratórios são importados. Isso explica, em parte, o pequeno avanço da pesquisa nacional no desenvolvimento de produtos para melhorar a vida das pessoas, como os medicamentos. Pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro, feita em 2010, mostrava que 46% dos pesquisadores já perderam material retido em meio à papelada da alfândega, que 95% já deixaram de fazer ou alteram estudo por problemas na importação e que 51% já modificaram pesquisas por não obter substâncias controladas.

Não é de hoje que os cientistas reivindicam a desburocratização do setor. Na última Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, em 2010, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC) reiteraram a necessidade de um regime jurídico diferenciado de compras, contratações, parcerias e importação de insumos para a pesquisa. Algo semelhante ao que seria feito mais tarde, por ocasião da Copa do Mundo de 2014, com obras atrasadas.

No Brasil, mais de 80% da pesquisa é realizada por universidades públicas, especialmente as federais. Pela Constituição, os órgãos públicos só podem fazer suas compras mediante licitação, submetidas ao controle dos tribunais de contas e do Judiciário. A rigidez e conservadorismo na interpretação do direito dessas instituições, com tendência a dar como irregulares os atos praticados, segundo a SBPC e a ABC, são incompatíveis com a dinâmica das atividades do setor.

Unificar regras

Ainda segundo essas entidades, a importação de insumos, equipamentos e materiais para a pesquisa é alvo de portarias, convênios e instruções normativas da Receita Federal, Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e outros órgãos vinculados ao Executivo federal, que se sobrepõem entre si. O ideal, para os pesquisadores, é unificar definições e regras de procedimentos e instâncias de fiscalização e distribuir as competências entre os agentes de forma clara e precisa, além de reduzir a exigência de documentos repetidos nas diversas etapas da compra no exterior.

“Quando a pesquisa é financiada por agências fomentadoras federais, como Finep e CNPq, até que é possível dispensar a licitação. Com recursos do Tesouro, não”, diz o presidente do Fórum de Pró-Reitores de Pesquisa e Pós-Graduação (Foprop), Isac Almeida de Medeiros, da Universidade Federal da Paraíba. A entidade congrega mais de 200 instituições de ensino superior federais, estaduais e municipais. “Problema é quando há necessidade de licitação internacional. Há empresa que se nega a participar de processo licitatório. Se não houver interessados em três desses processos, a conduta é justificar junto à Advocacia-Geral da União e pedir a dispensa da licitação. Mas até aí já se perderam seis, oito meses.”

O que se espera é que os percalços de quem faz pesquisa no Brasil comecem a ser superados com a regulamentação do chamado Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação que a presidenta Dilma Rousseff sancionou em 11 de janeiro – Lei 13.243. Com origem em projeto de lei da Câmara, aprovado por unanimidade pelos senadores em dezembro após tramitar por cinco anos, o marco permite a dispensa delicitação nas contratações de serviços ou produtos inovadores de empresas de micro, pequeno e médio porte.

Para o presidente da Federação de Sindicatos de Professores e Professoras de Instituições Federais de Ensino Superior e de Ensino Básico Técnico e Tecnológico (Proifes), Eduardo Rolim de Oliveira, o marco legal acaba com o “falso moralismo” da lei de licitações. “Licitação não significa necessariamente transparência nas compras, tampouco economia de recursos. Ao contrário, prevê uma série de amarras que acabam burladas. Há exigência de três orçamentos, que não podem diferir em 30%. Se a tomada for de três preços altos, vai sair caro. A lei é tudo, menos transparente e econômica. O que o pesquisador tem de comprovar não é preço, e sim a qualidade técnica do que está sendo comprado, se determinado produto atende mais à sua necessidade.”

Público e privado

O código avança também sobre uma questão polêmica no meio universitário: a aproximação entre universidade pública e empresas.O Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN) classifica a novidade como mais um passo na abertura do fundo público para o setor privado. Para o vice-presidente da entidade, Epitácio Macário, há retrocesso.

“O código permite o compartilhamento da infraestrutura física e pessoal das universidades públicas com organizações sociais e empresas privadas da área científica, e a produção do conhecimento poderá vir a ser patenteada e controlada por instituições privadas”, diz Macário, lamentando a dificuldade de reversão do processo. Para ele, a contratação de professores e pesquisadores, por meio de concursos, e o regime de dedicação exclusiva correm risco, já que a lei permite ao professor concursado criar, gerir ou participar das instituições de ciência e tecnologia, sendo liberado das suas atividades para atuar no âmbito das instituições privadas.

Já a professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP) ­Suzana Lannes, presidenta da Sociedade Brasileira de Ciência e Tecnologia de Alimentos, vê a medida como positiva. “Na área de alimentos isso é importante. A universidade faz a pesquisa básica e aplicada, mas há o entrave da comercialização. O marco regula e facilita a negociação desses produtos gerados pela pesquisa com as empresas. Com isso, vamos ter alimentos de mais qualidade, com benefícios à saúde, com produção sustentável”, acredita. Mas ela ressalva o cuidado a ser tomado na regulamentação, para que os incentivos à indústria não prejudiquem a universidade pública. “Caso contrário, nos tornaremos concorrentes e não parceiros.”

Medeiros, do Foprop, entende que a função da universidade – fazer pesquisa, e não produtos – não será prejudicada. “Com o marco, passamos a ter um ambiente jurídico propício e seguro para trabalhar. Não é ‘vender a universidade’, mas resguardar a soberania e a autonomia das instituições”, diz, lembrando a posição do Brasil no ranking dos que mais investem em pesquisa. “Estamos na 13ª posição. Porém, caímos para as posições de número 70, 71 na lista de geração de patentes. Temos massa crítica, mas não estamos transferindo para a sociedade esse conhecimento produzido na universidade”, acrescenta.

Conhecimento é risco

Entre os pesquisadores, há a expectativa de que a maior interação entre universidade e indústria estimule o setor produtivo a sair da sombra do Estado e passar a investir mais em pesquisa. “O empresariado brasileiro precisa entender que vale a pena investir no risco. Ciência, tecnologia e inovação são riscos. O conhecimento é risco. E quanto maior o enrosco burocrático, mais problemas nós temos. Ao desburocratizar esse processo, o avanço é enorme”, diz a professora titular do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara Vanderlan Bolzani.

O marco legal, entretanto, não basta. É preciso, segundo os cientistas, que ele seja regulamentado e efetivamente implementado, consolidando-se como política de Estado – e não de governo. “Apesar do histórico subfinanciamento da ciência e tecnologia, o ambiente científico construído a partir da criação do CNPq e da Capes, bem como do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, nos últimos 35 anos, mostram que a ciência brasileira avançou”, afirma Vanderlan. De acordo com ela, as chamadas commodities, que respondem pela maioria da pauta de exportações, agregam muita ciência brasileira.

Nesse grupo estão pesquisas da agrônoma tcheca radicada no Brasil Johanna Döbereiner (1924-2000), pouco conhecida por aqui. Seus trabalhos em órgãos como a Embrapa resultaram na fixação do nitrogênio por meio de bactérias. Indicada ao prêmio Nobel de Química em 1997, Johanna não levou, mas o adubo natural que ela desenvolveu permitiu a cultura de alimentos mais baratos e saudáveis. “Mas commodity é commodity. Você manda toneladas de soja para comprar alguns chips ou alguns produtos hospitalares, o que é um problema sério para o país”, diz Vanderlan Bolzani. “O país que almeja soberania internacional tem de ser forte e robusto nessas áreas. Pessoas educadas sabem o que é o melhor para o país.”