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Caminho com pedras

Brasileiro assume presidência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e propõe nova pauta, incluindo direitos econômicos e sociais

DANIEL CARON/FAS

Desafios. Preconceito contra índios e negros, questões econômicas e sociais fazem parte da pauta da Corte Interamericana

Na abertura do ano judicial interamericano, na Costa Rica, o brasileiro Roberto Caldas, novo presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), destacou a tendência impostergável de inclusão, na área jurídica, de temas econômicos, sociais, culturais e ambientais, em nível coletivo. Algo importante, lembrou, porque permite o enfrentamento judicial das desigualdades profundas da mais desigual das regiões do mundo, que é o nosso continente. A chegada de Caldas­ ao comando da corte é vista como uma sinalização importante, ainda mais em tempos de avanço do pensamento conservador.

“Sem igualdade não há democracia, sem democracia não há justiça e sem justiça não há paz”, acrescentou o ex-advogado trabalhista Caldas, cuja posse fugiu do padrão moderado da instituição, reunindo, entre outros, o presidente da Costa Rica, Luis Guillermo Solís, e o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), Luis Almagro Lemes.

Um aspecto a se observar é a ênfase dada aos direitos econômicos, sociais e culturais, conhecidos pela sigla Desc. É, talvez, um lado menos conhecido dos direitos humanos, pouco explorado, e que o próprio Caldas acredita que se tornará uma tendência crescente. Membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, Paulo Vannuchi, ex-ministro da área no Brasil, observa que a própria Convenção Interamericana de Direitos Humanos – firmada em 1969 e em vigor desde 1978 – tem apenas um artigo, de um total de 82, sobre esses direitos.

A CIDH ainda não decidiu um caso relativo a um desses temas, mas é um debate em ascensão. Trata-se de direitos como educação, habitação, saúde, alimentação e trabalho. “O desafio que temos é implementar o que as leis asseguram”, observa Vannuchi. Ele lembra que há ainda uma dificuldade histórica em relação aos Desc, pelo princípio da razoabilizade jurídica. Um país, por exemplo, não pode ser condenado por ter analfabetos. Mas pode-se buscar um avanço progressivo dessa e de outras deficiências. Nesse sentido, Vannuchi tem buscado estimular a participação de movimentos sociais, como o sindical e o estudantil, na OEA.

AGÊNCIA BRASIL
Caldas: falta de conhecimento na região

O secretário-executivo do Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos do Mercosul, Paulo Abrão, ex-secretário nacional de Justiça, destaca a importância do momento, não só no Brasil. “Apesar de muitos ainda conceberem os direitos humanos como temas sensíveis ou complicados, a verdade é que é um campo com linguagem universal estabelecida e uma institucionalidade crescente. A perspectativa brasileira de construção de políticas públicas com participação e com enfoque em políticas sociais aponta um caminho duradouro para solucionar aspectos centrais dessas crises.”

Abrão diz ter “alta expectativa” em relação à gestão da Caldas na corte. “Trata-se de um jurista forjado nas hostes dos direitos laborais. Tenho defendido que a crise no mundo do trabalho afeta toda uma estrutura social que acaba por impactar em situações de vulnerabilidade aos direitos humanos e da condição cidadã”, afirma.

Turbulência mundial

Para o secretário especial de Direitos Humanos no Brasil, Rogério Sottili, além do mérito pessoal, a chegada de Caldas reflete a força do Brasil a partir do processo de redemocratização e, particularmente, com a chegada do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao governo – com ações como o combate à fome, o Plano Nacional de Direitos Humanos e a Comissão Nacional da Verdade. “Evidentemente que o Brasil, junto com outros países, passa por momentos delicados. O mundo está passando por um período de muita turbulência”, diz Sottili, citando a atuação de grupos conservadores e uma crise econômica que ameaça restringir direitos sociais e econômicos, além de levar “a um questionamento das agendas de direitos humanos”.

Abrão e Sottili citam outro desafio, que é o dos limites de orçamento. “É preciso reconhecer que o Brasil tem mantido uma política de afirmação dos direitos humanos, e para isso deve priorizar o pagamento de suas contribuições aos organismos internacionais nesta área”, afirma o diretor do instituto do Mercosul.

Roberto Caldas, em seu discurso inicial, destacou o “pequeno orçamento” da CIDH e a necessidade de buscar contribuições voluntárias e recursos via projetos. Em entrevista ao site jurídico Jota, ele informou que de um orçamento anual total de US$ 5,7 milhões, aproximadamente US$ 3 milhões vêm de acordos de cooperação internacional, principalmente europeus, e os demais US$ 2,7 milhões, da OEA. A própria organização tem atrasados a receber dos Estados-membros. O valor é de aproximadamente US$ 24 milhões, a maior parte do Brasil.

Segundo o novo presidente, também falta aos países da região conhecimento sobre o papel da Corte Interamericana. “Às vezes nos dá a impressão de que é mais conhecida em alguns países europeus do que em alguns países americanos”, afirmou, na mesma entrevista.

Se falta conhecimento no próprio meio jurídico, imagine-se, então, entre as populações. À CIDH cabe analisar graves violações aos direitos humanos, conforme a jurisprudência internacional, depois de esgotados os recursos internos. E aos Estados cabe investigar casos de desrespeito à Convenção Interamericana de Direitos Humanos. Um processo que requer, lembra Paulo Vannuchi, paciência e diplomacia.

Os países signatários da convenção são obrigados a cumprir as decisões, mas isso nem sempre acontece. E um terço dos países não aceita a competência contenciosa (de solução de conflitos) da Corte Interamericana.

Comprometimento

A Lei Maria da Penha (Lei 10.886, de 2004), por exemplo, é reflexo de pressão internacional após decisão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA. A Corte Interamericana, por sua vez, já condenou o Estado brasileiro pelo caso Araguaia, durante a ditadura. Criada em 1959, a Comissão é um órgão consultivo, mas também tem papel jurídico e político. Já a Corte, de 1979, é um dos três tribunais regionais que zelam pela proteção aos direitos humanos – os outros são os da Europa e da África.

Sottili avalia que Roberto Caldas tem compreensão do papel conquistado pelo Brasil nos últimos anos, “em que pese o processo de violações que ainda existe no Brasil”. Inclusive relativas a trabalho análogo ao escravo, uma área em que o país conseguiu avançar por meio de políticas públicas. As mudanças, afirma, partem do reconhecimento do problema. O importante é saber se o Estado brasileiro está comprometido com essas mudanças.

A visão da CIDH difere da do Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro, que em julgamento de 2010 considerou a Lei da Anistia compatível com a Constituição. Paulo Abrão acredita que a chegada de Caldas à presidência da Corte pode influir para uma revisão da lei.

“Já acumulamos o suficiente para alinhar o país aos preceitos e tratados internacionais que afirmam os crimes contra a humanidade como imprescritíveis e impassíveis de anistia, como foram as violações sistemáticas e dirigidas da ditadura brasileira contra a resistência”, afirma. “Depois de 20 anos de Comissão de Mortos e Desaparecidos, 15 anos de Comissão de Anistia, dois anos de Comissão da Verdade e com a condenação internacional do Brasil no caso Araguaia, só resta ao STF atender aos reclamos de justiça das vítimas e seus familiares.”