cidadania

Contra o frio, os escorpiões e o descaso

Após anos de acampamento e de resistência a reintegrações de posse, famílias de Curitiba e São Paulo conquistam propriedade de imóveis ocupados. “É superação e vitória”, resume moradora

Danilo Ramos/RBA

O edifício Prestes Maia, em São Paulo, tem 22 andares e é compartilhado por 470 famílias. Os elevadores não funcionam e há problemas elétricos e hidráulicos

Durante vários meses de 1988, voltar para casa não era algo exatamente prazeroso para a bordadeira Iracema dos Santos Silveira, de 59 anos. O retorno para o lar significava enfrentar horas e horas de trajeto e entrar em uma barraca de lona construída no meio de um brejo, na ocupação do ­Xapinhal, no bairro Sítio Cercado, periferia de Curitiba. “Era muita cobra, muito sapo e muito escorpião. Nove companheiros morreram por causa de picadas”, conta. O terreno, de 350 mil metros quadrados, foi ocupado naquele ano por 400 famílias que já não conseguiam mais bancar os preços dos aluguéis.

A 450 quilômetros dali, na cidade mais rica do país, a atendente Denise Cristina Marques de Oliveira, de 27 anos, ainda vivencia situação parecida: moradora da ocupação do edifício Prestes Maia, no centro de São Paulo, ela enfrenta sete lances de escada para chegar ao seu pequeno apartamento, já todo mobiliado, onde mora com o filho. O prédio tem 22 andares e é compartilhado por 470 famílias, que dividem banheiros e corredores ainda com problemas elétricos e hidráulicos.

Apesar de viver a quilômetros de distância e serem de gerações diferentes, Denise e Iracema têm em comum a trajetória de luta por moradia, que inclui viver em condições de conforto e segurança muitas vezes consideradas precárias, enfrentar processos e reintegrações de posse e passar dias de frio e chuva em manifestações – mesmo a moradia sendo reconhecida como um direito humano fundamental desde 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Danilo Ramos/RBADenise_foto_Danilo_Ramos_RBA.jpg
Denise, do Prestes Maia: ‘Agora, depois de tanta luta, fica a satisfação de alcançar o direito que temos’

Em breve, no entanto, elas terão algo mais em comum: ambas receberão o título de propriedade dos seus imóveis, resultado de uma vida inteira de coragem e batalhas. “Não foi fácil e ainda não é. Foram muitas tentativas de reintegração de posse e muitas noites dormidas na frente da prefeitura. Sempre dissemos que não íamos sair. Nossos filhos e nossos idosos iriam para onde? Não somos invasores nem estávamos roubando, estávamos lutando pelo nosso direito. Agora, depois de tanta luta, fica a satisfação de alcançar o direito que temos”, resume Denise.

Do brejo à casa própria

O ano era 1988, mais precisamente a madrugada de 9 de outubro. Em Curitiba, 400 famílias subiam em um caminhão e seguiam no escuro para um terreno particular na zona sul da capital paranaense, até então uma região pouco urbanizada e sem infraestrutura. “Eles fizeram acampamentos como depois se veria os sem-terra fazerem: era lona, madeira, corda, sempre na resistência”, lembra a vice-prefeita de Curitiba, Mirian Gonçalves, advogada das famílias à época. “O inverno de Curitiba era muito frio. Aquelas pessoas ficaram morando em uma área descampada, em baixo de lonas, com muitas crianças. Faltava tudo para eles. Era muito difícil.”

Célio Joacir Ripetski, um dos líderes do movimento, observa que em poucos dias já havia milhares de pessoas no local. “Nós nos organizávamos desde 1986, reunindo famílias e tentando negociar com órgãos oficiais para que pudéssemos comprar aquela área. Porém, todo esse processo veio por água abaixo porque estávamos em um período de muita carestia, com inflação de 100% ao mês. Os aluguéis subiam de uma maneira que as famílias não conseguiam mais pagar. O último recurso foi a ocupação, não havia outra escolha. Subimos no caminhão e fomos, com a cara e a coragem”, lembra.

“Eu trabalhava em casa de família, não tinha estudo e ganhava muito pouco. Não tinha mais condições de pagar aluguel. Eu queria o terreno para viver com a minha família. Foi muita luta. Quando eu achava que ia ficar tranquila, vinha mais briga”, diz Iracema. Nesse processo, 3.200 famílias resistiram e continuaram na ocupação.

Treze crianças morreram nos primeiros anos devido a problemas de saúde desencadeados pela falta de saneamento básico. As famílias se mantinham organizadas, denunciando a situação ao poder público. Foram diversas manifestações na cidade e táticas de resistência às constantes ameaças de reintegração de posse. “Eu me lembro quando subi no caminhão e vim para cá, com meus 11 filhos, porque não conseguíamos mais pagar o aluguel. Nós dormíamos no chão. Já aconteceu de acordarmos com uma cobra no travesseiro”, conta a aposentada Aparecida Perduiguez, de 79 anos. “Meu marido ia trabalhar e eu ficava sozinha no barraco com as crianças. Era todo dia com medo. Muitas pessoas morreram aqui, lutando pela moradia.”

A professora de educação infantil ­Luciana de Fátima Carvalho chegou à ocupação no primeiro dia e ajudou a subir os barracos de lona. “A primeira visão era terrível. Era só barraca uma em cima da outra em um lamaçal. Ficamos muito tempo em uma situação precária, sem saneamento básico, sem condição de moradia e sem alimentação adequada, vivíamos basicamente de doações”, lembra.

Danilo Ramos/RBAseguranca_elis_foto_Danilo_Ramos_RBA.jpg
Elis: ‘Só de saber que não vamos ter que dormir na rua, sair da nossa casa, sofrer reintegração de posse, já é uma alegria’

“Já éramos 8 mil pessoas. Como a prefeitura ia dar as costas para tudo isso? Então eles sempre recebiam a gente, mas não se resolvia nada. Nas eleições municipais, conseguimos o compromisso dos candidatos com a manutenção das famílias no Xapinhal, como uma forma de pressionar. Até o próprio Lula, em 1989, foi na porta da ocupação. Já não era mais possível virar as costas para a gente”, conta Célio.

Apenas uma torneira abastecia toda a comunidade. A comunicação era feita por meio de uma rádio comunitária que funcionava com alto-falantes instalados na sede da associação de moradores, onde hoje está montado o Museu da Periferia (Mupe). Por segurança, as lideranças nunca eram tratadas por nome, mas por apelidos, como Cabelo, Bigode, Sabiazinho, Cigana.

Depois de muita pressão e de nove meses em baixo de barracas de lona, os moradores conseguiram fechar um acordo com a Companhia de Habitação Popular (Cohab) de Curitiba, que garantiu a eles a permanência no local. A área foi loteada pela primeira vez, e as famílias puderam construir barracões de madeira de 3 por 6 metros, o que acabou por melhorar um pouco a condição de habitação. “Era muito perigoso. Eu morria de medo da polícia, de bandidos, de animais. Mas tinha uma esperança muito grande de melhorar de vida”, lembra Iracema, emocionada.

Com a parceria com a Cohab, vias se abriram no local. Lotes foram organizados. Também melhorou a infraestrutura, com creche, escola e posto de saúde. Com o tempo e o incremento financeiro na renda das famílias, as casas passaram por reformas e foram construídas em alvenaria. Nos últimos dez anos, ganharam garagens, fachadas reformadas e eletrodomésticos modernos. “Aqui era tudo um grande brejo até a chegada da Cohab. Fui eu mesma que abri a vala para passar a rede de água em casa”, diz Luciana.

Danilo Ramos/RBAMaria_Silas_Cruz_foto_Danilo_Ramos_RBA.jpg
Maria: ‘Cheguei no primeiro dia, porque não tinha condições de pagar aluguel. Trabalhei, lutei e chorei muito aqui’

A vitória mesmo, no entanto, só veio em 17 de outubro do ano passado, quando o prefeito Gustavo Fruet (PDT) assinou o decreto que aprova o loteamento da Vila Xapinhal, regulariza a área e põe fim aos 27 anos de espera pela escritura de propriedade dos lotes. Ao final, 1.738 famílias que construíram suas vidas no Xapinhal conquistaram a propriedade do terreno.

“Essa é a vitória de uma vida. Nunca vamos esquecer, não tem como. Foi o terreno que ocupei, que meus amigos ocuparam. Nos envolvemos na luta e amanhã meus filhos terão essa propriedade. É uma história e uma conquista que vão permanecer por muitas gerações”, afirma Célio. “Tenho muito orgulho de ter conquistado tudo o que conquistei. Não é um bairro qualquer, como os outros. É um lugar que existe por causa de muita luta. Você não consegue imaginar a minha alegria em dizer: essa casa é minha. Ninguém me toma mais ela”, diz Iracema.

No último dia 29, Fruet iniciou a entrega das primeiras escrituras para moradores da Vila Xapinhal. Algumas poucas famílias já haviam pago o terreno em prestações à Cohab. A maioria começará o processo agora, dividindo o valor em parcelas até alcançar o total, que varia entre R$ 20 mil e R$ 30 mil. “Cheguei no primeiro dia, porque não tinha a menor condições de pagar aluguel. O que eu ganhava só dava para alimentar meu filho. Trabalhei, lutei e chorei muito aqui. Agora é só felicidade”, diz a dona de casa Maria Silas Cruz, do Conselho da Associação de Moradores do Xapinhal. “Vencemos. Agora ninguém mais nos tira daqui.”

Maior do continente

O endereço é Avenida Prestes Maia, 911. Na movimentada via de São Paulo, que faz a ligação entre as zonas norte e sul, famílias dividem o espaço, que já foi ocupado por duas vezes e sofreu diversas tentativas de reintegração de posse. O prédio é muito organizado e limpo, mas faltam elevadores e ajustes hidráulicos e elétricos.

Após 14 anos, as famílias do Prestes Maia conseguiram da prefeitura a garantia de que o imóvel será desapropriado e destinado ao programa Minha Casa, Minha Vida Entidades, por meio do qual será todo reformado. O anúncio foi feito pelo prefeito Fernando Haddad (PT) em outubro do ano passado, logo após as famílias sofrerem a última tentativa de reintegração de posse, que acabou suspensa pela Justiça, por considerar que já havia negociações avançadas para desapropriar o prédio.

Danilo Ramos/RBAIracem_foto_Danilo_Ramos_RBA.jpg
Iracema: ‘Eu trabalhava em casa de família e ganhava muito pouco. Queria o terreno para viver com a minha família’

“É uma vitória, mas ela só vai estar completa quando cada um pegar a sua chave e dizer: ‘Valeu a pena’”, diz uma das coordenadoras da ocupação, Ivonete­ Araújo. “Isso nos mostra que sem luta não se consegue nada e que é muito importante o movimento se manter unido em prol do nosso direito à moradia. Se tiver organização e se for persistente as coisas mudam, de uma forma ou de outra.”

Atualmente, a prefeitura faz o terceiro chamamento das entidades ligadas à ocupação para que levem documentos e comprovem o vínculo. A expectativa da coordenação é que em seis meses esse processo seja finalizado e comece a retirada das famílias para a reforma. O projeto deve ser finalizado em dois anos. “Temos ainda o receio de tirar as famílias e não conseguir que elas voltem. Por isso, precisamos da garantia da posse e de todo o processo documentado”, defende Ivonete.

“Só de saber que não vamos ter que dormir na rua, sair da nossa casa, sofrer reintegração de posse, já é uma alegria”, diz a vendedora e dona de casa Elis-Sarai Duarte dos Santos, de 46 anos, cinco dos quais em diversas ocupações da cidade. “Eu não tinha mais condições de pagar aluguel, mas agora vamos poder ficar tranquilos porque vamos conquistar nossa casa.”

O vizinho Lorivaldo Ribeiro, que trabalha como vigilante, concorda. “Foi muita luta nestes cinco anos e meio em que estou aqui. Nós íamos inclusive ajudar o pessoal de outras ocupações. Sempre me lembro de uma reintegração de posse de um prédio na Avenida São João e de ver as crianças e os idosos chorando, sendo retirados pela Polícia Militar com toda as suas coisas, sem dó nem perdão”, diz, entre lágrimas. “Aqui também lutamos muito. Foram dias de acampamento em frente à prefeitura e resistência às reintegrações de posse, com muito medo. Se esse povo saísse daqui, para onde iria?”

Ao todo, serão 300 unidades habitacionais, com banheiros individuais. Apenas as lavanderias devem ser coletivas. O movimento reivindica agora que na parte térrea do prédio sejam construí­das uma creche e uma unidade básica de saúde. “Ficamos com uma diferença de 170 famílias que vamos continuar reivindicando moradia no entorno. A seleção será feita pela participação na luta”, conta Ivonete. “Algumas pessoas me dizem: ‘Eu queria só uma casinha, nem que fosse lá longe, só com um banheirinho’. Eu falo: ‘Essa fase do banheirinho já acabou. Você está aqui reivindicando um direito e merece coisa grande’.”

De acordo com a Secretaria Municipal de Habitação, o imóvel está em processo de desapropriação pela Cohab de São Paulo. Já foi estabelecido um acordo para a conclusão desse processo, e os valores referentes a compra do prédio já foram depositados. O acordo aguarda homologação para ser encaminhado para a Justiça que, por sua vez, concederá a posse do imóvel às famílias. “Quando eu cheguei aqui, não tinha consciência do meu direito por moradia, tinha parado de estudar e não trabalhava. O Prestes Maia me deu muito mais que habitação, me deu cidadania, me mostrou que tenho direito a casa e educação e saúde pública de qualidade”, diz Denise Cristina, há seis anos na ocupação, que já chegou a ser a maior da América Latina. “É luta, superação e vitória”, resume.


As ocupações do Prestes Maia

crianca_prestes_maia_foto_Danilo_Ramos_RBA.jpg

Icônico na capital paulista, o Edifício Prestes Maia foi ocupado pela primeira vez em 3 de novembro de 2002. Uma série de conflitos e entraves jurídicos fez com que as então 300 famílias que viviam no local acabassem aceitando um acordo e desocupando o prédio. Elas foram atendidas por um programa de habitação estadual na zona leste da cidade. Outras foram contempladas com uma carta de crédito do governo federal.

“De um lado tínhamos um processo de reintegração de posse e um imóvel todo enrolado juridicamente, de outro tínhamos a necessidade das famílias. Aí optamos por batalhar para atendê-las naquele momento, mas sem esquecer do que significa a Prestes Maia”, conta a coordenadora Ivonete Araújo.

O tempo passou e a resposta do poder público não veio a contento. “Já era 2010 e víamos que nada era feito com aquele imóvel. Ele estava sem morto, escuro, servindo para a especulação imobiliária. Precisava de vida. Então, ocupamos de novo”, diz. “Passamos por várias ameaças, várias noites em vigília, com medo de sermos pegos de surpresa. Depois de tudo, não tínhamos como ficar quietos.”


As mulheres do Xapinhal

Ao percorrer a vila e conversar com os mais antigos, percebe-se facilmente a opinião unânime: se os moradores chegaram aonde chegaram, os louros da vitória vão principalmente para elas, as mulheres do Xapinhal.

Na maioria, eram os homens que saíam para trabalhar durante o dia. As mulheres ficavam nas barracas com as crianças. Era justamente nesse horário que os interessados em forçar as reintegrações de posse vinham ao local, julgando erroneamente que encontrariam menor resistência.

“Eu e as mulheres íamos para linha de frente, acreditando muito no que fazíamos. Se alguém colocava as coisas das famílias em caminhões, éramos nós mesmas que tirávamos”, lembra a vice-prefeita de Curitiba, Mirian Gonçalves.

Leia também

Últimas notícias