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Pífanos, a busca do reconhecimento

As bandas que são um dos mais tradicionais retratos da identidade musical do Nordeste estão perto de alcançar o título de Patrimônio Imaterial da cultura brasileira

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Banda de Pífanos São Cristóvão, de Panelas, no agreste pernambucano

Pífano, pífaro, pife. Instrumento de influência indígena feito de taboca ou taquara com sete orifícios, um para soprar e seis para dedilhar. Também confeccionados em tubos de PVC ou de metal. É difícil acreditar como um instrumento aparentemente tão simples e feito artesanalmente é capaz de produzir uma música tão rica e bela, animar festas, procissões e ainda ser o sustento de muitos músicos em várias regiões do Brasil.

É no Nordeste que se concentra a maior tradição e profusão das bandas de pífano, mas a sonoridade se espalhou pelo ­país. Essa forma de expressão pode ser encontrada em todas as regiões, no Sudeste (São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais), no Sul (Santa Catarina), no Centro-Oeste (Distrito Federal) e no Norte, em tribos do Alto Xingu. Conhecidas também como zabumba, cabaçal, esquenta mulher, terno de pífanos, entre outras denominações, elas são formadas por músicos intuitivos – geralmente os pifeiros fazem seus próprios instrumentos, e também os vendem.

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Tradição: A Banda de Pífanos Zé do Estado, de Caruaru, usa o chapéu de couro estilizado como se usava no cangaço. Na foto de baixo, a Casa do Pife, que ocupa a antiga estação ferroviária de Caruaru

“Eu faço pife, toco pife, vendo pife, como o dinheiro do pife e depois de velho fico pifado”, brinca João do Pife, da banda Dois Irmãos. João é um ícone das bandas de pífanos no Brasil, já tocou em mais de 20 países. Segundo ele diz, o músico de pife, para se tornar um mestre, tem de fazer, tocar e ensinar tudo sobre o instrumento.

A famosa Feira de Caruaru, em Pernambuco, cantada por Luiz Gonzaga, e Patrimônio Cultural Imaterial brasileiro, continua sendo uma vitrine para as bandas da região, e também mercado para a compra dos pífanos. Lá se encontra a Banda de Pífanos São Cristóvão, de Panelas, no agreste do estado. Dizia o sanfoneiro Dominguinhos: “De tanto ver as bandinhas de pife, seu Luiz Gonzaga se inspirou para criar essa formação do forró pé de serra, ou seja, sanfona, zabumba e triângulo”. O som desses instrumentos também influenciou compositores e arranjadores brasileiros como Quinteto Violado, Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Geraldo Azevedo, Naná Vasconcelos, Quinteto Armorial, Carlos Malta e o Pife Muderno.

Mas foram as pesquisas tropicalistas de Gilberto Gil que deram visibilidade nacional às bandas de pífano, em particular à de Caruaru, denominada em seu primeiro LP, no início dos anos 1970, como Banda de Pífano Zabumba Caruaru. A lendária orquestra, atualmente com todos os músicos residindo em São Paulo, fez história na música popular brasileira, e o próprio Gil já falou que o movimento tropicalista teve influência das bandas de pífanos. Em 1972, a banda aparece no LP Expresso 2222, de Gil, tocando Pipoca Moderna, primeira faixa do disco.

Novenas

Há uma relação de afinidade e dependência entre as bandas de pífanos e ritos católicos, principalmente em época de novenas – encontro para orações, realizado durante o período de nove dias, em devoção à Santíssima Trindade, à Virgem Maria, a anjos ou santos. No Nordeste, novenas ocorrem praticamente durante todo o ano. Entre os mais festejados, estão São Sebastião, São José, Santo Antônio, Santa Luzia, Nossa Senhora de Lourdes.

O repertório tocado são os benditos, as rezas, muitas vezes acompanhando por beatas e devotos cantando em latim. Nas novenas a banda é de grande importância – desde o momento da abertura, na colocação do mastro da bandeira, até o final dos nove dias. As festas religiosas ajudam na salvaguarda das bandas de pífanos e no orçamento familiar dos músicos. “Uma novena sem banda de pife é quase um velório”, diz José Cesário, da banda Frei Damião, de Tabira, no sertão, a 400 quilômetros de Recife.

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João do Pife: ‘Eu faço pife, toco pife, vendo pife, como o dinheiro do pife e depois de velho fico pifado’

São nove dias tocando pela manhã bem cedinho, depois ao meio-dia, e finalizando às 19h com outra reza. Depois sai o lado religioso e começa o forró. Músicos tradicionais já observam, porém, algumas mudanças nas conduções das novenas por parte de alguns párocos, que às vezes pechincham no ínfimo cachê recebido pelos músicos e chegam a colocar o CD da banda de pífanos para tocar no carro de som, em vez de contratá-la. Também já se veem filarmônicas nas festas, geralmente oferecidas por um ­político local. “Hoje a banda da cidade (filarmônica) está tomando o lugar da banda de pífano, mas acho que tem lugar pras duas, um dia toca uma, no outro toca a outra”, diz Lindolfo Liberal, da banda de pífanos São José, de Ingazeira, vizinha a Tabira.

Se um dia a Igreja Católica resolver dispensar as bandas de tocar nas novenas, há um risco muito grande de se acabar a tradição, principalmente na zona rural do Nordeste. O visual sempre foi um diferencial das bandas de pífano – principalmente das nordestinas, que sempre procuraram ressaltar a identidade regional em suas vestimentas. Hoje, principalmente no agreste, é possível ver bandas usando o chapéu de couro estilizado como se usava no cangaço – é o caso da Banda de Pífanos Zé do Estado de Caruaru.

Patrimônio

Ao longo de décadas, várias atividades direcionadas para a catalogação, preservação e salvaguarda das bandas de pífanos vêm sendo desenvolvidas por profissionais de diversos estados e até do exterior. São ações significativas, como: Tocando Pífanos, encontro nacional de bandas, atualmente em sua quinta edição; Pífanos e Mamulengos, ciclo itinerante de apresentações musicais e oficinas de confecção de pífanos já realizadas no Distrito Federal, Bahia, Minas Gerais, Alagoas, Sergipe e Pernambuco; Eu Toco­ Pife, programa de apresentações musicais e oficinas de confecções de pífanos nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Paraná, Distrito Federal e Ceará; Pífanos nas Escolas, oficina de confecção de pífanos na rede pública de Recife e outras regiões de Pernambuco; e a gravação do CD João do Pife e Banda Dois Irmãos de Caruaru.

João e banda chegaram a participar de shows, oficinas e palestras no festival Sous-Fifres de Garonne, na cidade francesa de Saint Pierre D’Aurillac. O festival reúne músicos de várias partes do mundo, com foco no pífano.

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A Banda de Pífanos Vitoriano Jovem já formou cerca de 15 jovens, de 8 a 16 anos

O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan, ligado ao Ministério da Cultura), apoiou uma pesquisa com a finalidade de mapear e catalogar as bandas de pífanos do agreste e sertão, em regiões de Moxotó, Pajeú e Central de Pernambuco. O objetivo foi subsidiar o registro do instrumento como Patrimônio Cultural Imaterial brasileiro.

A partir dessas atividades se constituiu um acervo importante e rico, composto de CDs, fotos, vídeos, instrumentos, livros, sites, e formou-se uma rede de informações fundamentais para a manutenção da tradição musical e troca de novos conhecimentos sobre o tema.

No mais recente Tocando Pífanos, encontro de bandas realizado em outubro, em Olinda, para estabelecer uma nova forma de difusão dos grupos de pífanos, ficou demonstrado que, apesar de um aparente esquecimento nos últimos anos, as bandas de pífanos permanecem sólidas e com profunda empatia junto ao público. O encontro de bandas de origens, musicalidades, performances e características diferentes, com acesso gratuito à população, foi um dos mais importantes do gênero no país, aliando apresentações musicais com debates, palestras, lançamento de livros, CDs e DVDs e venda de produtos afins.

A partir do evento e do mapeamento e pesquisa dos pífanos de Pernambuco, ficou evidente que já era o momento de solicitar ao Iphan o pedido de registro das bandas de pífanos como Patrimônio Imaterial.

O tocador Sebastião Biano, de 96 anos, líder da Banda de Pífanos de Caruaru, disse que foi dado um grande passo para a preservação dessa cultura no Brasil. Espera-se que o reconhecimento como patrimônio – processo que deve levar ainda pouco mais de um ano para se concretizar – repercuta no interesse pela difusão e aprendizado da expressão musical pelos mais jovens, fazendo com que a tradição não desapareça.

E que as bandas tenham atenção especial dos órgãos de cultura, nos incentivos para projetos de salvaguarda. Um exemplo dessa necessidade da formação está na Banda de Pífanos Vitoriano Jovem, de Caruaru. Incentivada pelo mestre Marcos do Pífano, a banda estuda semanalmente no terraço da casa do próprio Marcos e já formou 15 jovens, de 8 a 16 anos.

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