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Tragédia sem fim

Meses após rompimento da barragem de rejeitos da Samarco, ações para contenção dos danos à vida seguem como emergenciais. Enquanto populações vivem incerteza, concentração do poder da Samarco nas ações reparatórias é criticada

DOUGLAS MAGNO/AFP/GETTY IMAGES

Laudo do Ibama aponta fragmentação de habitats, destruição de áreas de preservação permanente e vegetação nativa, mortandade de animais e impacto à produção rural e ao turismo. Segundo o instituto, a reparação dos danos pode durar dez anos

O acidente ainda não acabou, diz o coordenador de Atendimento a Emergências Ambientais do Ibama, Marcelo Amorim, sobre o rompimento da barragem de rejeitos da mineradora Samarco, controlada pela brasileira Vale e pela australiana BHP Billiton. O fato ocorreu em 5 de novembro, em Mariana (MG), quando a barragem de Fundão liberou cerca de 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro. A lama provocou a mortandade de peixes e outras espécies aquáticas. O mesmo aconteceu com diversos animais marinhos, assim que a mancha marrom invadiu o oceano. Os sedimentos carregados para o leito dos rios modificaram a vegetação. Estudos colocam em xeque a qualidade da água para o consumo animal, o abastecimento humano e o trabalho produtivo.

Apesar de considerada a maior tragédia ambiental da história, o retorno das ações de reparação está abaixo das expectativas. Em novembro, a Advocacia-Geral da União ajuizou ação civil pública que prevê a criação de um fundo de R$ 20 bilhões destinados exclusivamente à recuperação ambiental da bacia do Rio Doce. A Samarco pagará R$ 4,4 bilhões nos próximos três anos, após acordo com a União e estados envolvidos. Recentemente, a Polícia Civil chegou a pedir prisão preventiva de sete pessoas, entre elas o presidente afastado da Samarco, Ricardo Vescovi, pelos crimes de homicídio qualificado das 19 vítimas da tragédia (duas seguem desaparecidas), de inundação e de poluição de água potável.

Natureza morta

Um dos efeitos imediatos do acidente foi o tapete de peixes mortos. “Tenho um vídeo da lama chegando com uns peixes gigantes, todos mortos. Foi triste ver como a lama arrasou a vida do rio”, diz a bióloga Talita Silva, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Segundo dados do Ibama, foram recolhidas cerca de 9 toneladas de peixes mortos ao longo dos 90 quilômetros de extensão. “A lama densa levou o oxigênio da água a zero. É impossível que qualquer animal aquático que precise de oxigênio sobreviva a uma densidade dessas”, afirma Marcelo Amorim.

Frente à possibilidade de perder grande parte da fauna do Rio Doce, pescadores do Espírito Santo convocaram um mutirão de resgate, conhecido como Operação Arca de Noé, no dia 13 de novembro, em cidades onde a lama ainda não havia chegado. Além de salvar dourados, surubins, tucunarés e outros peixes abundantes na região, a operação garantiu a preservação de espécies endêmicas e ameaçadas de extinção, como o surubim-do-doce, o andirá e o curimbá. Os mais de 150 mil peixes salvos foram levados a lagoas não contaminadas.

Não há clareza sobre a quantidade de animais mortos da fauna silvestre. “Era recorrente ver um animal atolar na lama ao tentar beber água do rio”, conta Marcelo. Segundo ele, o Ibama realizou um trabalho de distribuição de água para que os animais não precisassem chegar ao leito. Segundo dados da Samarco, 3 mil animais, de várias espécies, foram resgatados das áreas afetadas. Eles vêm recebendo atendimento médico veterinário e alimentação. A Samarco foi autuada com uma multa de R$ 250 milhões, proposta pelo Ibama, e outra de R$ 112 milhões, pela Subsecretaria Estadual de Fiscalização de Meio Ambiente. A empresa recorreu e ainda não houve decisão final.

Ruim para os animais, ruim para o ser humano. A água ficou imprópria para consumo. Entre as cidades mais afetadas, estão Governador Valadares (MG) e Colatina (ES), onde o abastecimento depende totalmente do Rio Doce. A interrupção no bombeamento de água para Valadares foi feita em 9 de dezembro, quando a lama alcançou a cidade e provocou desabastecimento para cerca de 280 mil pessoas.

No início, os reservatórios ainda conseguiam levar água à população. “O pessoal sentiu na pele quando começou a faltar na torneira”, conta Talita Silva, que mora na cidade. Nesse período, houve uma série de mobilizações, desde pessoas rezando pela recuperação do rio até o bloqueio de estradas pela população.

A Samarco se responsabilizou por providenciar o abastecimento por meio de caminhões-pipa. O primeiro carregamento precisou ser descartado em razão de contaminação da água por querosene presente no veículo. A distribuição em Governador Valadares foi feita até 22 de janeiro, apesar das tentativas da empresa de interromper o serviço. Os pontos de entrega, porém, eram poucos e as reclamações dos cidadãos, que tinham de esperar em filas enormes embaixo do sol, eram recorrentes.

Em 18 de novembro, a lama chegou a Colatina, que também teve o abastecimento de água interrompido, prejudicando 122 mil pessoas. Ali, a desorganização no processo de distribuição de água potável, de responsabilidade da Samarco, foi motivo de brigas e agressões entre os cidadãos que esperavam na fila. A distribuição de água mineral em Colatina ficou assegurada por um Termo de Compromisso Socioambiental assinado dois dias antes de a lama chegar à cidade. Nele, a Samarco se responsabilizou em garantir sua distribuição nos municípios de Baixo Guandu, Colatina, Marilândia e Linhares. “Também está obrigada a apresentar um plano emergencial de contenção, prevenção e mitigação dos impactos ambientais e sociais”, afirma a coordenadora do Centro de Apoio do Meio Ambiente do Ministério Público do Espírito Santo, Isabela de Deus Cordeiro.

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O rompimento da barragem jogou sobre os habitantes de Bento Rodrigues (distrito de Mariana, MG) e na bacia do Rio Doce 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração de ferro. Nas amostras coletadas, foram encontrados níveis elevados de arsênio e manganês. A Fundação SOS Mata Atlântica divulgou laudo no qual 16 dos 18 pontos de coleta apresentaram péssima qualidade da água

A empresa tentou interromper o abastecimento alguns dias depois. “A Samarco entendeu que só deveria fornecer água enquanto houvesse a interrupção da captação do Rio Doce e por isso cessou a distribuição, no dia 21 de novembro. Mas a água do rio traz um nível de incerteza muito grande, não há segurança de que pode ser consumida”, afirma Isabela. Com esse argumento, o Ministério Público capixaba ajuizou ação civil pública com o pedido de permanência do serviço. A Samarco anunciou, novamente, o fim da distribuição em 24 de janeiro, mas perdeu o processo mais uma vez.

O vaivém na obrigatoriedade da distribuição de água tem sua razão de ser. O tratamento da água do Rio Doce voltou a funcionar uma semana após a lama contaminada ter chegado a Colatina. Para tanto, vem sendo utilizado o Tanfloc, polímero da acácia negra. A substância acelera o processo de decantação da lama presente na água. A tecnologia, desenvolvida pela empresa gaúcha Tanac, não contém metais em sua fórmula e, por isso, apresenta uma série de vantagens com relação a substâncias comumente usadas para esse tipo de tratamento. Entretanto, o produto vem sendo utilizado em quantidade superior ao recomendado pela própria fabricante.

Vida em risco

Desde que aconteceu o rompimento das barragens, foram realizados diversos laudos ambientais. O Serviço Geológico do Brasil (CPRM) e a Agência Nacional de Águas (ANA) analisaram uma série de amostras e concluíram que a água do rio Doce está dentro dos padrões estabelecidos pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente. “Se esse não fosse o nosso entendimento, estaríamos causando um problema de segurança pública”, afirma Marcelo Amorim, do Ibama.

Outros laudos, porém, apresentam resultados diferentes. Nas amostras coletadas pelo Grupo Independente de Análise de Impacto Ambiental (Giaia) e publicadas em 15 de dezembro, foram encontrados níveis elevados de arsênio e manganês. Já a Fundação SOS Mata Atlântica divulgou laudo técnico em 26 de janeiro no qual 16 dos 18 pontos de coleta apresentaram Índice de Qualidade da Água (IQA) péssimo. “O Ministério Público pressionou a empresa, mas a Justiça Federal entendeu que a água poderia ser distribuída por estar dentro dos padrões de normalidade”, afirma o promotor Marcelo Volpato.

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Solução distante: a lama da barragem continua a fluir e contaminar o ambiente. A Samarco culpa as chuvas pelo atraso nas obras de contenção dos rejeitos

A lama alcançou o mar em 21 de dezembro. Regência, distrito de Linhares (ES) de 1.200 habitantes e uma das joias do litoral do Espírito Santo, que mistura rio, mar e mangue, é também umas das regiões mais importantes do Brasil para a desova das tartarugas marinhas. Pesquisadores do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Tartarugas Marinhas (Tamar) tiveram de antecipar a última etapa do nascimento das tartarugas, já que cerca de 100 filhotes corriam o risco de nadar em direção à lama. Elas foram levadas a uma praia a 20 quilômetros ao sul da vila.

As expectativas indicavam que a lama seria levada pelas correntes marítimas até o arquipélago de Abrolhos (BA), onde se registra a maior concentração de vida marinha do Atlântico Sul. O arquipélago é conhecido por ser a principal região de reprodução das baleias jubarte. Expedições científicas coordenadas pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), entre janeiro e fevereiro, coletaram amostras de sedimentos, microorganismos e diversas espécies aquáticas para analisar as condições da água e dos animais. As análises ainda não foram publicadas.

Todas as medidas ambientais adotadas até o momento são apenas emergenciais. “Para nós, do Ibama, o acidente só vai acabar quando cessar a fonte. Enquanto a lama continuar descendo, carreando resíduos, nosso trabalho está em vigor. Por isso ainda tem um caráter emergencial”, diz Marcelo Amorim. A expectativa era de que a fonte de resíduos parasse em fevereiro, após a conclusão de quatro diques de retenção, o que não aconteceu.

Só com o fim do carreamento de rejeitos será possível pensar em um projeto de recuperação da bacia do Rio Doce. A elaboração do plano exige um trabalho de levantamento de tudo o que já foi estudado sobre a região e, em um segundo momento, da verificação de tudo que sofreu impacto. O Ibama rejeitou o Plano de Recuperação Ambiental apresentado pela Samarco em 18 de janeiro. Segundo nota divulgada pelo instituto, o diagnóstico dos danos ambientais era “extremamente superficial” e não apresentava os impactos sociais, levantamento das espécies afetadas, detalhamento das ações a longo prazo, entre outras questões. Um mês depois, novo documento foi entregue pela mineradora.

Além dos problemas ambientais e sociais, a população de toda a bacia do Rio Doce sofre com a falta de informações. Isso ficou claro para o engenheiro civil e permacultor Felipe Pinheiro, um dos membros da Expedição Rio Doce Vivo, que foi de Mariana até Regência com o objetivo de registrar a ­realidade dos habitantes e oferecer oficinas de permacultura – método de planejamento preservacionista que leva em conta a integridade e importância mútua de todos os componentes de um ecossistema. “Em todos os lugares que a gente passou a realidade é de extrema fragilidade e zero informação. Eles não têm a quem recorrer, estão abandonados”, conta. Felipe critica o fato de não haver nenhuma orientação para que os cidadãos tomem suas decisões. “As pessoas não sabem se a água do abastecimento pode ser ingerida ou não.”

Os moradores seguem ainda inseguros quanto à estabilidade das outras barragens. A Germano, maior do complexo minerador de Mariana, apresenta uma fissura em uma de suas três camadas. O prefeito de Mariana, Duarte Júnior, afirma que à época da tragédia havia 22% de risco de rompimento. “Não houve nenhuma dilatação desde então”, acrescenta.

Em 17 de janeiro, uma reportagem do programa Fantástico apresentou documentos alegando que a empresa sabia que a barragem do Fundão corria riscos desde 2013. A Samarco foi contatada pela redação e disse repudiar qualquer especulação sobre conhecimento prévio do risco iminente de ruptura na Barragem de Fundão. As operações nas unidades de Germano (MG) e Ubu (ES) seguem paralisadas, mas a Samarco estuda alternativas para a retomada da produção.


 

Imagem e direitos

A busca por assegurar os direitos dos atingidos pela tragédia é dura tarefa. O Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) proposto pelo Ministério Público de Minas Gerais foi assinado no último dia 3 de março. Prevê a criação do fundo de R$ 20 bilhões em 15 anos para ações reparatórias, mais R$ 4,1 bilhões em ações compensatórias. Até março de 2018, a Samarco deverá ter depositado R$ 4,4 bilhões desse montante.

As principais ações buscarão a recuperação da biodiversidade, manejo e dragagem dos rejeitos, tratamento dos rios e criação de uma Área de Proteção Ambiental da Foz do Rio Doce. Serão nove programas reparatórios e nove compensatórios. Está prevista a recuperação de 5 mil nascentes em dez anos. Serão destinados R$ 500 milhões para reabilitar ações de coleta e tratamento de esgoto, erradicar lixões e implementar aterros sanitários em 39 cidades afetadas.

O MP e especialistas criticam o fato de o TAC concentrar poderes à Samarco. “É totalmente absurdo imaginar que a empresa é a única a controlar a implementação das reparações. É ela que vai fazer o planejamento das ações, decidir quem será indenizado, quando e como. Não há nenhuma estrutura em que os atingidos possam participar. É possível que os atingidos venham a contestar o acordo”, diz a urbanista Raquel Rolnik.

Antes de se chegar ao TAC, a empresa havia pedido a liberação de R$ 300 milhões bloqueados judicialmente e discordava de sua abrangência, uma vez que o termo contempla também cidadãos afetados de forma indireta.

O gesto havia levado o MP a entrar com ação civil pública em 10 de dezembro contra a firma. Requereu realocação dos atingidos em moradias alugadas, pagamento de verba mensal aos desabrigados no valor de um salário mínimo, mais 20% por dependente, além de cesta básica, assistência médica, psicológica e garantia de acesso à educação. E também pagamento de R$ 20 mil para cada família que perdeu sua moradia e a fixação de uma primeira parcela de indenização no valor de R$ 100 mil para aqueles que perderam parentes.

“A mineradora vai pagar ainda um salário mínimo acrescido de 20% por dependente e uma cesta básica para todos os pescadores e trabalhadores ribeirinhos que dependiam do Rio Doce para conseguir sua renda”, diz o procurador Estanislau Tallon Bozi, do Ministério Público do Trabalho do Espírito Santo. Foram catalogados 11 mil beneficiados.

O próximo passo é trabalhar no processo de reconstrução dos distritos. As comissões dos atingidos das cidades de Bento Rodrigues e Paracatu se reúnem semanalmente com promotores, prefeituras e a Samarco para planejar a obra. O presidente da Associação Comunitária de Bento Rodrigues, José Nascimento de Jesus, 70 anos, lista alguns dos 17 critérios estabelecidos. “Pedimos um terreno que ofereça opções hídricas e não tenha uma topografia acidentada. A distância máxima do novo distrito até Mariana deve ser de 24 quilômetros.” No final de fevereiro, os moradores de Bento Rodrigues visitaram o terreno onde deverá ser construído o novo distrito.

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Ao mesmo tempo em que relutava em pagar por estragos, empresa gastou em propaganda na TV

A Samarco, apesar de estar por trás da maior tragédia ambiental do país, e de contestar valores estimados para começar a reparar os estragos, investiu pesado em publicidade. A campanha que tenta reverter imagem negativa adota tom “humanizado”, com frases como “de repente a gente amanheceu com essa missão de ajudar as pessoas”, dita por uma funcionária em vídeo que chegou a ser exibido entre o Jornal Nacional e a novela das 21h, da TV Globo.

O MPF oficiou a empresa – que havia alegado dificuldades financeiras – a esclarecer quanto gastou. E a opinião pública, pelas redes sociais durante e após a exibição da peça, teve reação negativa. Internautas questionaram como uma empresa que teve os bens bloqueados pela Justiça e se recusou a pagar indenizações aos atingidos pela tragédia gasta recursos com um comercial em horário nobre.