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No modelo econômico o planeta ferve, e o aquecimento continua

Apesar da euforia com a adesão da maioria dos países à COP-21, acordo do clima já nasce ameaçado por depender excessivamente do bom comportamento de Estados Unidos e China

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Com temperatura 1,35 grau Celsius acima da média dos últimos 136 anos, fevereiro foi o mês mais quente da história. Ou, pelo menos, desde 1880, quando começaram a ser feitas as medições globais de temperatura. Tórrido no Hemisfério Sul, fevereiro desbancou aquele que até então era o mês mais quente: justamente o anterior, janeiro. Para os climatologistas do Instituto Goddard de Estudos Espaciais da Nasa, autores da medição e da análise científica que a acompanha, tudo indica que 2016 será o ano mais quente da história, superando… 2015. Segundo a agência espacial dos Estados Unidos, novos recordes de temperatura são esperados para julho e agosto, no verão do Hemisfério Norte.

Impulsionadas nos últimos dois anos por forte aquecimento das águas na superfície do Oceano Pacífico – fenômeno conhecido como “El Niño” –, as quebras sucessivas de recordes e o aumento considerável em relação à média histórica são indicadores de que o planeta se aquece de forma acelerada. Mais do que isso, as altas temperaturas, segundo os especialistas da Nasa, trazem embutidas uma má notícia: a permanecer esse ritmo, será impossível manter o aquecimento da Terra no limite de 1,5 grau Celsius, meta defendida como ideal pela maioria das nações durante a 21ª Conferência das Partes da Convenção sobre Mudanças Climáticas da ONU (COP-21), realizada em dezembro em Paris.

“Corremos sério risco de não cumprir o acordo celebrado na COP-21”, constata o secretário-executivo do Observatório do Clima, Carlos Rittl, em referência ao documento final aprovado pela maioria dos 195 países presentes ao encontro de cúpula na capital francesa. Considerado a base para um “pós-Kyoto”, o acordo destravou a negociação climática internacional, paralisada havia quase uma década, e será ratificado agora em abril, em cerimônia a se realizar na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York. Sua aplicação prática terá início em 2020.

O documento final da COP-21 estabelece o objetivo de não permitir que o aumento da temperatura média do planeta ultrapasse os 2 graus Celsius até 2050. As nações signatárias também se comprometem a tentar limitar este aumento a 1,5 grau, meta considerada “quase impossível” na análise divulgada pela Nasa. Para conseguir honrar as ousadas metas estabelecidas em Paris, os países têm de tornar realidade alguns planos nacionais de ação contra as mudanças climáticas que, em muitos casos, ainda nem saíram do papel. Às vésperas de sua ratificação, o Acordo de Paris permanece frágil, sobretudo pela posição de incerteza interna vivida por alguns dos principais atores das negociações climáticas globais.

Obama e os republicanos

Nos Estados Unidos, país que jamais ratificou o antigo Protocolo de Kyoto, mas que, na gestão de Barack Obama, ensaiou um retorno em força às discussões climáticas no âmbito da ONU, a Suprema Corte suspendeu – por cinco votos a quatro – o Plano de Energia Limpa que havia sido anunciado pelo governo em agosto do passado. Por estabelecer metas concretas para a redução da emissão de gases de efeito estufa pelo setor elétrico, o plano chegou a ser apresentado em Paris como a principal ação norte-americana no combate ao aquecimento global. Mas não resistiu à oposição interna liderada pelos estados produtores de petróleo e carvão governados pelo Partido Republicano, como Texas e Virgínia.

A decisão dos juízes revelou o quão difícil será para Obama vencer a oposição republicana, que também é maioria no parlamento, e pôr em prática as pretendidas ações de enfrentamento às mudanças climáticas. O caso ainda será analisado por uma corte de apelações, em sessão marcada para junho, e a estratégia do governo para tentar reverter a decisão será citar deliberações anteriores da Suprema Corte que reconhecem o impacto dos gases de efeito estufa sobre a saúde pública do país. “O aquecimento global já afeta o meio ambiente e o bem-estar dos americanos, e é hoje um dos principais desafios para os Estados Unidos”, disse o procurador-geral, Donald Verrilli, à agência de notícias Reuters.

Apresentado em Paris, o Plano de Energia Limpa elaborado pela Agência de Proteção Ambiental do governo norte-americano traz o compromisso de reduzir as emissões do país em 32% até 2030, tomando como base os índices registrados em 2005. Sua apresentação serviu como grande estímulo para que se chegasse a um acordo na COP-21, já que o setor energético fortemente baseado nas termelétricas a carvão é responsável por um terço das emissões no país. Se a suspensão do plano for confirmada, isso representará um sério revés para as pretensões de adoção de um “pós-Kyoto” pelos países signatários do Acordo de Paris.

Um eventual recuo da maior potência econômica do mundo deverá comprometer também o financiamento do Fundo do Clima, mecanismo criado na COP-16 (em Cancún, no México, em 2010) com o objetivo de garantir recursos para que os países mais pobres possam realizar ações de mitigação e enfrentamento das mudanças climáticas. Apesar da ideia inicial de dotar o fundo com US$ 100 bilhões por ano desde 2011, este ainda se encontra estagnado e descapitalizado.

Na COP-21, o secretário de Estado, John Kerry, anunciou compromisso de dobrar os aportes de recursos ao Fundo do Clima. Aí, também, um recuo teria efeitos catastróficos. “É importante que os Estados Unidos continuem no barco, ao lado dos outros países. Ao oferecer mais dinheiro e mostrar mais flexibilidade em sua posição, o país deu o tom e definiu os termos do acordo firmado em Paris”, diz a ambientalista brasileira Iara Pietricovsky, que é dirigente do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e esteve presente na conferência ­realizada na França.

Dragão sustentável

País que nos últimos 15 anos viveu acelerado crescimento econômico baseado na queima de combustíveis fósseis e tomou dos norte-americanos a liderança do ranking dos que mais emitem gases de efeito estufa, a China se comprometeu na COP-21 a reduzir em 65% suas emissões até 2030, tendo como base o ano de 2005. Em Paris, o governo chinês apontou também para o ano de 2030 como prazo limite para atingir o pico de suas emissões, mas o grande desafio do país agora é antecipar o cumprimento dessa meta, já que seu crescimento econômico, sempre em torno dos 10% no período entre 2000 e 2013, desacelerou nos últimos dois anos.

Para evitar repetir nos próximos anos os 10,5 bilhões de toneladas de CO2 lançados na atmosfera em 2014, o capítulo sobre energia do Plano Quinquenal divulgado em março pelo governo chinês aposta no desenvolvimento de fontes de energia limpa, como a eólica e a solar. Segundo um estudo elaborado pela London School of Economics, entre 2010 e 2014 as alternativas energéticas não fósseis cresceram 73% na China, e a expectativa do governo é que esse crescimento seja ainda maior nos próximos cinco anos.

Do êxito do plano chinês dependerá também o sucesso do Acordo de Paris. “Se traduzir em políticas concretas o que está previsto no plano, a China deixará o papel de vilã do clima que cumpre desde o ano 2000 e poderá tornar-se até mesmo líder do combate às mudanças climáticas”, diz o dirigente da seção asiática do Greenpeace, Li Shuo, segundo o Observatório do Clima.

Para tornar real aquilo que qualifica como uma “revolução energética”, o Plano Quinquenal do governo chinês apresenta as metas de limitar o consumo de energia do país em 5 bilhões de toneladas de carvão e de reduzir o uso de energia fóssil em 15% até 2020. Em seus estudos, o governo trabalha com a previsão de uma taxa de crescimento de 6,5% a 7% ao ano nos próximos cinco anos. “A China vai honrar os compromissos climáticos que assumiu em Paris e vai participar ativamente da gestão global do clima”, declarou o primeiro-ministro, Li Keqiang.

Dilma veta

No Brasil, a divulgação pelo governo do Plano Plurianual (PPA) para o período 2016-2019 foi alvo de críticas por parte de organizações ambientalistas, que acusam o país de ­desrespeitar os compromissos assumidos durante a COP-21. O principal problema, dizem as ONGs, foi o veto integral, feito pela presidenta Dilma Rousseff, ao item do PPA que fala em “promover o uso de sistemas e tecnologias visando à inserção de geração de energias renováveis na matriz elétrica brasileira”. O veto presidencial incluiu todas as metas e ações previstas para esse setor.

Em Paris, o governo brasileiro se comprometeu em, até 2030, elevar a 45% a participação das fontes renováveis em sua matriz energética, incluindo aí a opção hidrelétrica. Os vetos ao PPA, no entanto, não pouparam a meta de aumentar em 13.100 megawatts a capacidade instalada de energia gerada a partir de fontes limpas. Também foram vetados itens que mencionam o incentivo ao uso de fontes renováveis por meio da geração distribuída, no uso de fontes solares fotovoltaicas e na implementação de projetos voltados ao desenvolvimento de fontes renováveis. Segundo a organização Instituto Socioambiental (ISA), esses vetos não são condizentes com os compromissos assumidos pelo Brasil no Acordo de Paris.

Para a maioria dos ambientalistas, apesar dos discursos e da boa vontade demonstrada pelos governantes durante a COP-21, o combate ao aquecimento global só seria realmente efetivo se conseguisse transformar o modelo de desenvolvimento capitalista atual. “Enquanto pensamos se o aumento da temperatura vai ficar em um grau e meio ou dois graus, os mesmos governantes querem fechar a Rodada de Doha da Organização Mundial de Comércio (OMC), entre outros acordos comerciais tenebrosos que se arquitetam no mundo e que manterão nosso planeta aquecendo-se aceleradamente. Ao que parece, ninguém da parte dos governos e muito menos das grandes corporações quer romper com esse modelo hegemônico. Então, discutir se teremos um aumento de somente um grau e meio ou menor que dois graus parece ridículo para qualquer ser humano comum”, diz a antropóloga Iara Pietricovsky, do Inesc.

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Às vésperas de sua ratificação, o Acordo de Paris permanece frágil, sobretudo pela posição de incerteza interna vivida por alguns dos principais atores das negociações climáticas globais