Lenine

Música e educação, antídotos para salvar o homem de si mesmo

Canções de Lenine revelam preocupação com o ambiente, o planeta que é um útero e com a formação de “gente que pensa”

jailton garcia/rba

“Não cheguei sozinho”, canta Lenine na música Castanho, faixa inicial do CD mais recente, Carbono (2015), e também a primeira a ser tocada na apresentação da atual temporada, na mistura de sons e ritmos que caracteriza a sua obra. “Recifense-carioca, brasileiro do mundo”, como se apresenta no site oficial, Oswaldo Lenine Macedo Pimentel completou 57 anos em fevereiro, 33 de carreira e 12 discos. As influências de Lenine sempre foram múltiplas, como as parcerias e os interesses. Chegou a iniciar o curso universitário de Engenharia Química, mas aos 20 anos largou tudo para ir morar no Rio de Janeiro, de onde não saiu mais.

Lançou o primeiro disco em 1983, e o segundo, apenas dez anos depois, para então enfileirar trabalhos e hits. No início de abril, uma arritmia causou susto e levou ao cancelamento de uma apresentação, mas ele conta que agora está tudo bem. “Dá sempre uma fragilidade quando você depara com a falibilidade das coisas”, comenta, tranquilo, pouco antes de um show que faria no Sesc Vila Mariana, em São Paulo. “Mas assim que é, a vida é isso, a gente tem de ter isso no pé do ouvido o tempo todo.”

Conhecido por cultivar plantas, Lenine conta que as orquídeas foram basicamente uma porta de entrada. “Tudo me fascina, as trepadeiras, as helicônias, os filodendros”, diz o artista. “Digamos que no universo do banco genético brasileiro a gente está falando em 2.500 espécies, eu tenho umas 1.600. Significa dizer que você tem mais de cinco matrizes de cada espécie.”

É um estímulo que se relaciona com a música, já que em cada turnê ele vai conhecer outros “orquidólatras”. “O cara é que tem as plantas do lugar, o endemismo, que é o que me interessa. A música também é generosa nesse sentido, permite mapear os lugares onde vou através das plantas… Cada planta ganha um catálogo, a espécie, onde ocorre, a época de floração, onde eu ganhei, de quem eu ganhei. Virou também um banco de memórias associados também à música, aos trajetos que eu faço pela música.”

Nesses trajetos, sempre esteve clara a preocupação com o ambiente e o destino do planeta, que Lenine imagina como um útero, lamentando a “atrocidade predatória” do ser humano. Ele critica também a insistência em uma política oligárquica, como uma “velha tribo”, espantado com a presença do presidente da Câmara dos Deputados,­ Eduardo Cunha, na liderança do processo de impeachment. Para o “cantautor” – outra definição sua –, qualquer solução passa por um caminho: “A educação é fundamental para a gente quebrar com esses paradigmas, com essa perpetuação no poder”.

Quando a gente tem essa convicção de imaginar o planeta como um único útero, encerrado em si, é difícil você não perceber a atrocidade predatória que o ser humano está impondo ao planeta

Hoje (22 de abril), Dia da Terra, foi assinado na ONU aquele acordo para combater o aquecimento global, a emissão de gases. Tem compromisso aqui no Brasil, há uma série de metas. Para você, uma pessoa atenta a essa questão, esse acordo traz algum alento ou prefere aguardar?

Eu realmente prefiro aguardar, porque a história tem dado exemplos seguidos da falibilidade das coisas. Sou da época da Eco’92. Lembro que ali foi estabelecida uma recuperação da Baía da Guanabara, que houve investimento japonês, inclusive, uma série de projetos, e grande parte nunca saiu da prancheta. Estou esperando, torcendo.

Em seu último disco a música, Quede Água? tem uma letra contundente. Fala de mobilidade urbana, da dificuldade dos grandes centros do Sudeste e em “ações tardias”. As autoridades demoraram a agir, houve descaso com o planeta?

Primeiro, eu tenho de dizer que a canção a que você se refere, Quede Água?, é uma parceria com Carlos Rennó. A poesia é do Rennó. O texto inicial era maior, passava por outras questões de muita relevância e importância. No meio de uma apropriação de minha parte para fazer a canção, eu cortei algumas coisas. Mas acho muito perspicaz. Nos pareceu o quanto era oportuno que naquele momento era o apogeu da crise, São Paulo sem água, todo canto, sofríamos por tudo, houve realmente um momento crítico e não chovia, começou o racionamento… Uma questão que é anterior ao Quede Água?, mas que sempre esteve em toda a minha discografia, é essa preocupação ou essa visão mais holística, mais global, do que é este planeta, e imaginá-lo como um útero. Quando a ­gente ­tem essa ­convicção de imaginar o planeta como um único útero, encerrado ­­em si,­ ­é difícil ­você não perceber a atrocidade predatória que o ser humano está impondo ao planeta. Acho que as equações mudaram todas, e a culpa disso é a própria interferência desse ser humano. Pela primeira vez na história do planeta, uma única espécie está fazendo a balança pender para um lado. Tem uma série de questões que mesmo a nossa matemática, as nossas leis que regem meteorologia, geografia, estão passíveis de mudança, porque a gente não tem mais como escalonar. A interferência está sendo tamanha que os ventos estão mudando, a umidade está indo bater em outros lugares, tudo que é agricultura, que depende desse manancial de água, vai mudar, e quem sofre com isso é a própria população. Esse arrodeio todo que eu dei com você, só porque você me perguntou sobre Quede Água?, mostra o quanto disso está presente em tudo o que faço, essa percepção de que a gente está perdendo um tempo gigantesco e estamos rumando para um futuro cada vez mais desesperançoso.

É o modelo que está todo errado? Nessa mesma música, você fala do lucro no curto prazo, do “agrotóxiconegócio”, essa voracidade de ganhar rapidamente…

Isso, avidamente, a qualquer preço. Não tem como mensurar o grau de interferência que estamos impondo a esse útero. Mesmo as expectativas mais nefastas do que seria um futuro possível daqui a 50 anos não dá para confiar. Fica evidente que não é uma progressão aritmética. É geométrica. O volume disso, e a velocidade com que está acontecendo, a gente é incapaz de mensurar. Isso tudo me preocupa muito, ainda mais que tenho filhos, agora netos. Que herança a gente deixa? Então, acho que está muito presente em todo o meu trabalho essa necessidade que o ser humano tem de perceber o planeta como uma única coisa.

A seca avança em Minas,

Rio, São Paulo.

O Nordeste é aqui, agora.

No tráfego parado onde me enjaulo,

vejo o tempo que evapora.

(…)

A grana a qualquer preço,

o corte raso, o agrotóxiconegócio;

A grana a qualquer preço,

o petrogaso-carbocombustível fóssil.

(Trecho de Quede Água?)

Como surge, de onde vem essa consciência ambiental?

Acho que é minha formação em casa, socialista cristã, franciscana (risos). Meu pai (José Geraldo) foi o primeiro cara que disse pra mim: a diferença entre socialista e cristão é só a morte. Como assim? O cristão está trabalhando aqui para depois da morte chegar no paraíso, socialistas estão querendo esse paraíso antes de morrer (risos). É simplista, mas é bonita a maneira de ver, a preocupação humanitária que as duas vertentes têm, uma pelo dogma da fé e tudo, outro, da razão, da percepção cartesiana das coisas. No meu pai, essas duas coisas se equilibravam, até morrer, há pouco tempo, não tem um ano, aos 93, dormindo…

A crise política está intimamente ligada à educação. Não houve investimento na formação de pessoas, de gente que pensa, que sabe em quem vota e foge dos currais eleitorais que se perpetuam

Você falou que ele era socialista e foi trabalhar na Bolsa da Valores…

Isso! Os paradoxos são incríveis… Ele dividiu com minha mãe (Dayse) essa coisa de pôr nome nos filhos. Então, nos filhos homens ele que pôs o nome. Um foi Renan e o outro, Lenine. E aí mamãe botou duas santas, Maria Teresa e Maria das Graças. Eles tinham isso, dividiam mesmo. O lado cristão de minha mãe no almoço era sagrado, ela rezava e ele respeitava. A gente ia jantar, nas plenárias… Discutíamos tudo. E ele, de alguma maneira, ritualizou, divinizou a conversa, a troca de informações. Acho que herdo isso muito do berço, essa visão mais ­humanista das coisas.

Tem um Tolstoi na sua banda (JR Tolstoi, músico e coprodutor), um requinte…

Também, é… Mas tem Bruno (Giorgi)… Que é homenagem a Giordano Bruno (risos). Então, estou bem cercado.

E o seu apoio à campanha pela música na educação? Você também já se chamou de educador…

Minha questão é maior… Sou completamente a favor da educação. Essa crise política toda no país está intimamente ligada à educação, não houve investimento na formação de pessoas, de gente que pensa, que sabe em quem vota e foge dos currais eleitorais que se perpetuam. Não tem outro caminho. Mas você está falando a questão da educação musical retornar às escolas, e isso já fez parte do currículo. Mas antes de ser a favor da educação na escola, sou a favor de uma educação mais ampla, mais profunda, e isso não se faz. Esse tipo de investimento que requer a espera de uma geração, pelo menos, ninguém fez até agora.

Sobre essa questão do voto e falando de educação, o que você achou daquele sessão de domingo (17 de abril), quando a gente viu ­exposto o nosso Congresso?

Eu acho que por um lado é muito bom, que mostra o quão diverso a gente é. Agora, me preocupa muito o nível dele. Porque aí, no final das contas, não interessa, é aquilo ali que o povo elegeu. É só uma constatação que eu posso fazer, do quanto falta educação. Então, voltando à sua pergunta anterior, do quanto a educação é fundamental para a gente quebrar com esses paradigmas, com essa perpetuação no poder, de uma velha tribo. É uma oligarquia. Imagine como deva ser para os senadores que recebem um documento da Câmara, assinado por Eduardo Cunha (enfatiza o “u” no sobrenome), essa pessoa que está assinando… Ele assinou isso, esse impeachment! Quer dizer, isso tudo como uma forma de retaliação que a gente sabe, quem acompanha um pouco essa história recente, esse caos que a gente está vivendo. Você vê a ironia de tudo isso. Eu tenho muito vergonha, principalmente eu, que a música me conduziu a transitar por fora do país­ também.

Tenho muitos amigos por esse planeta de meu Deus, tenho lugar pra cair em qualquer lugar deste planeta. Justamente nesta hora em que deparo com outro de outro lugar, é a hora que dói mais. Que você se vê de outra maneira, de alguma maneira você se vê de fora. Você vê a coisa pequena que se transformou, e dualista, que ou é contra ou a favor, é coxinha ou é petralha, como se essa confusão não fosse infinitamente maior, e tem a ver realmente com algumas instituições que estão podendo trabalhar e abrir um buraco que é gigante, de institucionalização da corrupção, e a gente está só no início desse processo… Querendo ou não, a gente está pela primeira vez levantando o tapete, ou não? Não sei até que ponto, mas se levantou. Talvez essa fratura exposta seja um benefício civilizatório pra gente, ou exorcizar de alguma maneira, ou realmente isso ser uma coisa de conduta. Gente, chega de hipocrisia! Tu fala uma coisa e faz outra. Esse impeachment está sendo feito e e as pessoas têm de receber com Eduardo Cunha réu? Mentiu, é um mentiroso, essa cara que tá assinando… É muita ironia histórica.

Voltando à música, lembro que você falou que sempre perseguia uma certa estranheza…

Não era nem eu que perseguia, a senhora estranheza sempre esteve do meu lado aqui mandando uns “agá”, eu dou ouvidos a ela, dou. Ela me trouxe aqui, isso eu não posso negar. Esse estado de procurar uma certa estranheza a ponto de levar um pouquinho além, sem descolar da realidade, mas tendo uma autoralidade, eu devo à senhora estranheza. Foi ela que buzinou no meu ouvido: “Já fizeram, você não vai levar um pouquinho além, não?”

Perguntei porque agora você fala “dessa tal simplicidade” (referência à canção Simples Assim, do novo CD)…

É, mas é estranha! A simplicidade é muito estranha, e talvez seja mais difícil de chegar, quando você tem esse acúmulo de informação.

Você tem parcerias com todo tipo de gente, gosta desse trabalho coletivo. Incomoda quando você é apresentado como “cantor pernambucano”, como se tentassem catalogar em um regionalismo?

Mas fica mais fácil dizer o pernambucano Lenine. Só acho estranho não dizer isso com o paulista Arnaldo­ (Antunes) ou a carioca Fernandinha Abreu. Você entende? E eu que tenho uma sensação de ­expatriamento, porque fui muito cedo para o Rio. A minha formação musical, meu profissionalismo, a opção de viver de música foi no Rio. Todos os discos eu fiz no Rio, meus filhos todos são cariocas. Mas é o pernambucano Lenine, veja bem, com muito orgulho! Porque realmente estou impregnado daquela cultura. A formação do ser humano vai até os 17, 18 anos, o resto eu acho que é um aprimoramento, uma lapidação. Mas o grosso do caráter, da personalidade, é feito ali até 17, 18, 19 anos… Acho que a geração de hoje é diferente. Não ouso falar sobre a geração de hoje, ­sujeita a esse bombardeamento de informações a toda hora. Mas na minha época, estou com 57 anos, posso dizer isso. Isso aconteceu pra mim onde? Em Recife, cara. É natural que eu esteja impregnado da picardia de Recife, do trava-língua, do trocadilho, do repente, da coisa junina, da melancolia árabe, moura, que você encontra no Dominguinhos ou no Djavan… Isso tudo tem a ver com Nordeste, que também estou completamente inserido nele.

E essa turma nova de autores?

Gosto de muita gente. É difícil dizer um nome só, porque vou cometer um pecado. O meu trabalho tem essa reverberação em quem cria. Isso faz com que chegue muito a mim, trabalhos autorais, independentes. Então, recebo mensalmente, velho, 30, 40 projetos. E, olha, o nível é lá em cima. O que é difícil, da maneira que está pulverizado hoje em dia, é chamar a atenção para uma ou para outra. Mas recebo muita coisa bacana, espalhada por todo o Brasil. Nunca se ouviu, se consumiu e se praticou tanta música.