'Craques' de 2050

Robôs enfrentarão a melhor seleção de futebol do mundo

'Atletas' construídos em plataforma tecnológica estão sendo preparados para desafiar o 'time dos sonhos', qualquer que seja ele. Independentemente do placar, ciência e educação já saem ganhando

Gerardo Lazzari/RBA

O objetivo é desenvolver máquinas com capacidade de interagir com o ser humano, diz Flávio (abaixo). E não de substituí-lo

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A meta é ambiciosa: desenvolver um time de robôs humanoides capazes de enfrentar – e ganhar – da melhor seleção mundial de futebol de 2050 num jogo dentro dos padrões da Fifa. Tamanho desafio está por trás do trabalho de professores, pesquisadores e alunos de universidades de todo o mundo que disputam a RoboCup, competição internacional criada em 1997 para difusão da robótica, dos avanços em inteligência artificial e da educação científica e tecnológica. Entre as ligas, a mais famosa é a de futebol de robôs.

No Centro Universitário da FEI (criado em 2002 a partir da antiga Faculdade de Engenharia Industrial), em São Bernardo do Campo, no ABC paulista, o objetivo promete ir bem além. “Não é só ganhar dos humanos, e sim ter uns robôs do nosso tamanho, poder sentá-los no anfiteatro para ver os jogos da Alemanha, discutir com eles as jogadas, entregar passagem de avião para cada um viajar, jogar, ganhar e ainda trazer o caneco. Eles vão pegar táxi, fazer tudo sozinhos. Difícil vai ser passar no raio-X do aeroporto: vão achar que eles carregam facas, mas é o braço”, diz, entusiasmado, o professor de Ciência da Computação Flavio Tonidandel, coordenador do projeto de robótica.

Segundo ele, não se sabe quando tudo isso será realidade. “Porém, um robô que saiba interagir com o ser humano, tomar as suas decisões de maneira autônoma, é o objetivo da pesquisa que a gente faz aqui”, afirma.

Para isso, professores e alunos da graduação e da pós-graduação, no mestrado e doutorado, se debruçam sobre estudos para aperfeiçoar as duas seleções de robôs da instituição que todo ano participam dos jogos nacionais e internacionais da RoboCup. A equipe mais antiga e tradicional, hexacampeã brasileira e latino-americana, é formada pelos mais baixinhos – mas em nada lembram Diego Maradona, Lionel Messi ou Zico. Craques da categoria Small Size ­Soccer, também conhecida como RoboCup F-180, não passam de 15 centímetros de altura e são bem gordinhos: 18 centímetros de diâmetro. São programados para tocar a bola, driblar e até lançar para o companheiro por cima do adversário. E se estiver por perto, para chutar para dentro do gol. Sem rede, ainda. Se o goleiro espalmar, tem escanteio – e assim o jogo vai.

Em campo, são seis contra seis. “A gente só aperta a tecla enter do computador e fica assistindo, torcendo. Mero torcedor. O sistema analisa a posição do jogador, como estão os adversários, e então toma as decisões. Não sabemos o que vai acontecer e ficamos na torcida para que o jogador tome a decisão certa”, conta Flavio.

Na concentração da FEI, ou melhor, no laboratório em que os alunos vão além dos conteúdos de engenharia elétrica e mecânica, automação, ciência da computação e inteligência artificial, o que chama mais a atenção são os robôs humanoides. Com cabeça, tronco e membros, são os futuros craques ainda na infância. Pesados e desengonçados, deslizam vagarosamente pelo campo para manter o domínio da bola e seguir em direção ao gol. O mais comum é tropeçar nos fios fofos da grama sintética. Mas apesar da dificuldade pela lentidão dos movimentos, conseguem se levantar.

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Isaac e Danilo: sistema desenvolvido na FEI analisa posição do jogador, dos adversários e toma as decisões

Com pouco mais de três quilos, eles vêm se desenvolvendo ao longo de três anos para perder peso e ganhar agilidade e resistência. Por meio de avanços na impressão 3D, capaz de “imprimir” peças em plástico, muitos metais estão sendo substituídos. Como a equipe médica e física de um time, professores e alunos trabalham praticamente o dia todo. Os mestrandos desenvolvem tecnologia para melhorar o equilíbrio desses jogadores para não cair ao levantar um das pernas – o que não acontece com os da outra categoria, com rodinhas. Os doutorandos têm como desafio aguçar a percepção da posição dos companheiros e também dos adversários. A expectativa é que em poucos anos sejam capazes de fazer o que se espera de todo craque: os básicos passes. Só então serão desenvolvidos robôs maiores.

É exatamente nisso que trabalha o doutorando Danilo Perico, da área de inteligência artificial. “O objetivo é incrementar o raciocínio, para maior autonomia e velocidade de jogo. Sem isso, é impossível que eles possam jogar em 2050”, conta o estudante, que passa o dia todo na faculdade, dividindo-se entre a sala de aula e o laboratório. Conforme destaca, a equipe na qual trabalha compete atualmente em pé de igualdade com muitos times do mundo. “É o trabalho de um time, um desenvolvimento, em que todos ganham.”

Insatisfeito em apenas programar robôs da linha de produção de montadoras e indústria de autopeças, o engenheiro elétrico Isaac Jesus da Silva voltou para a universidade. Colega de Danilo no doutorado, é um entusiasta. “Como aconteceu com a informática, a robótica passa por um processo de expansão e sai dos laboratórios. Chegou à indústria e chega ao usuário comum. Já temos robôs que fazem limpeza, que facilitam a vida dentro e fora de casa. Mas temos de aprimorá-los e reduzir seu custo”, diz.

Em todo o mundo, a robótica tem entre os desafios a interação com o ser humano, que guarda diversas sutilezas. É como ensinar ao robô fazer rir as pessoas tristes e ele querer fazer piada em um velório por não poder discernir as causas dos sentimentos e emoções. Mas esbarra ainda em problemas limitações mais operacionais, como o energético. Ao contrário dos humanos, que podem passar até dias sem comer, robôs necessitam de baterias, que se esgotam em pouco tempo. Em repouso, um robô humanoide da FEI consome a carga de uma bateria equivalente à de um notebook em uma hora. Se estiver jogando, acaba em 20 minutos.

As pesquisas para baterias capazes de durar muito mais estão hoje voltadas aos celulares. Embora possa pegar carona nessa tecnologia em andamento, a robótica precisa ainda de motores menores, mais baratos, para fazer as vezes da musculatura humana que permite tantos movimentos, como saltar, quando os dois pés ficam sem apoio. “Para complicar, não temos no Brasil os materiais hoje mais modernos, como metais leves, baterias, que vêm do Japão, da Europa, Estados Unidos. Caros, demoram mais de seis meses para chegar”, diz Flavio Toridantes.

Paixão mundial, o futebol está longe de ser o fim dessas pesquisas na FEI e nas dezenas de universidades federais, estaduais e demais instituições privadas do Brasil e do mundo filiadas à RoboCup – a Fifa do setor, que tem japoneses, norte-americanos e alemães nos primeiros lugares de seu ranking. As técnicas, teorias e análises desemvolvidas são compartilhadas com a comunidade científica de todo o mundo por meio da publicação de trabalhos, participação em congressos nacionais e estrangeiros, beneficiando principalmente a pesquisa de robôs colaborativos.

om isso, mesmo que em 2050 não se tenha ainda a seleção humanoide em campo contra os campeões da Fifa, haverá robôs muito melhores e melhor treinados para resgatar vítimas de terremotos, desmoronamentos, incêndios, realizar cirurgias cada vez mais complexas, cuidar de pessoas idosas ou com necessidades especiais, encarar atividades arriscadas ou repetitivas do dia a dia ou simplesmente ir até a geladeira, pegar uma cerveja, abrir, colocar no copo e trazer a bebida a quem não quer perder um lance sequer do jogo que assiste pela TV. Problema vai ser quando essas máquinas, de tão aprimoradas, resolverem tomar a cerveja no meio do caminho.

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A robótica vai à escola

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Turma de Pernambuco na OBR: escolas do Nordeste predominam na competição

Para alunos da rede de ensino fundamental e médio de todo o país, a robótica não é mais ficção científica de um futuro distante. Ao contrário, está revolucionando a escola e ajudando a reduzir as desigualdades regionais em educação. “A tecnologia é uma ferramenta que permite e estimula o aprendizado de todos os conteúdos da matriz curricular de maneira criativa e divertida”, conta a professora de Ciências da Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenadora da Olimpíada Brasileira de Robótica (OBR), Esther Luna Colombini.

Conforme destaca, vem do Nordeste quase metade da participação das escolas públicas – e o Ceará ganha a maioria das medalhas na modalidade teórica da olimpíada. “São estados que têm investido mais em políticas voltadas para a educação em nível fundamental e médio, inclusive com incentivo ao ensino de robótica. Não posso dizer o mesmo de São Paulo, onde a maior parte das escolas participantes é da rede privada ou do Sistema S”, afirma.

Segundo ela, faltam pesquisas mais apuradas sobre o impacto da disciplina na melhoria do ensino como um todo e na redução das desigualdades regionais presentes também no setor.
O Acre, por exemplo, tem mais participação na olimpíada que o Distrito Federal. “É a divulgação científica como instrumento de inclusão e redução da desigualdade, estimulando o aluno a se interessar por ciências e buscar carreiras tecnológicas.”

Em sua décima edição, a OBR deste ano reúne 100 mil alunos de todos os estados, que participam das modalidades práticas e teóricas. A cada ano, a participação aumenta em cerca de 40%. Os ganhadores em nível nacional representam o Brasil na RoboCup, que neste ano será em Leipzig, na Alemanha, de 30 de junho a 4 de julho.

Maior seletiva em todo o mundo para a competição internacional, o Brasil tem tudo para se tornar o país da robótica – e não só do futebol. “Com raras exceções, e apesar da falta de material didático e livros, temos aqui uma forte política educacional pública voltada para o setor. Os governos estão entendendo que a robótica melhora o ensino na prática, desperta o interesse pela ciência e tecnologia e por essas carreiras”, diz Esther.

Segundo ela, a OBR tem contribuído também para reduzir a evasão no ensino superior. Um levantamento mostra que mais de 70% dos estudantes de graduação de áreas científicas e tecnológicas afirmam que a participação na olimpíada foi decisiva na escolha da faculdade e da carreira profissional. “Além disso, já entram na universidade com conhecimento a propósito daquilo que querem seguir. Tanto que muitos que participaram estão hoje cursando graduação e pós-graduação na área.”