Cultura

Nossa Senhora do Rosário. Axé pra quem é de amém

Cerimonial afro, na igreja no bairro paulistano da Penha, conecta fiéis a uma história de resistência negra e a um futuro de esperança

Quando o sino, na toada do atabaque, convoca o povo, o Largo do Rosário se colore em festa. É dia de evocar os antepassados. E se fazer presente na história originada naquela igreja construída por negros escravizados. Proibidos de frequentar as missas com seus senhores, eles ergueram a capela de Nossa Senhora do Rosário, no bairro da Penha, zona leste da capital paulista. A porta original acentua o transporte no tempo, e as paredes de taipa abraçam os fiéis. O canto e o louvor perpassam gerações e aglutinam o sentimento de fé, entrega, memória e resistência.

A missa inculturada, presente em diferentes estados, é um traço do Brasil colonial, misto de catolicismo apostólico romano e ritos e tradições de matriz africana. Dos imigrantes que aqui aportaram pela dominação e conquista de terras, ou por meio da mão de obra escrava, nasceu uma identidade nacional, que se faz contar sobretudo em celebrações como esse cerimonial afro, que no primeiro domingo de cada mês reúne a comunidade do bairro da Penha e visitantes de todos os cantos.

“O que realizamos é com base no que intuímos de como deveria ser feito. Também há relatos em livros que descrevem como eram realizadas as festas dos negros e das irmandades no Brasil Colônia. Através dessa literatura podemos concluir que existem algumas singularidades”, diz o geógrafo Júlio Cesar ­Marcelino, membro da Comissão do Rosário e do Movimento Cultural da Penha, que há três anos colabora na organização da celebração.

No ano 2000, o Departamento de Controle do Uso de Imóveis (Contru), órgão municipal, interditou a Igreja, pois o teto ameaçava cair. Uma reforma aconteceu depois da mobilização de moradores do bairro. Dois anos depois, foi criada a comissão, a fim de promover eventos que trouxessem a população àquele espaço sagrado, dando-lhe visibilidade e impedindo que sua história fosse soterrada.

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Secular

Quem participa da celebração veste roupas com motivos afros. As mulheres enfeitam os cabelos com turbantes e flores. No ar, perfume de alfazema e arruda

Não há data precisa para o nascimento da igreja. A formalização da construção tem um registro em 16 de junho de 1802, data que acabou destinada a eventos que reúnem no largo festeiros de outras regiões do estado, além de Minas Gerais e das tradicionais irmandades – como a do Largo do Paissandu, a mais antiga da capital, no centro.

Celebrar a permanência da construção em pé – a única em São Paulo, levantada­ por negros escravizados, a se manter no local de origem – é um dos motivos da reunião de todo primeiro domingo do mês. Egresso do ministério sacerdotal católico e hoje ministro da palavra nos cerimoniais afro, José Morelli se diz um dos espectadores da luta de força e resistência daquelas pessoas. Autorizado pelo monsenhor Carlos Calazans (pároco da Penha e responsável pela capela do Rosário) a conduzir as celebrações utilizando a liturgia católica, é um dos entusiastas do evento.

Morelli cresceu absorvendo a memória visual do largo. Quando criança, foi coroinha e ajudou em missas no antigo altar. Afastou-se por 17 anos, em função do seminário e da vida de padre, e retomou as atividades ali em 1994, ao confeccionar presépios dentro e fora da igreja. Aproximou-se do Movimento Cultural Penha e também participou da conservação do local. “O cerimonial segue as orientações litúrgicas romanas. Como em outras igrejas, são adicionados elementos da cultura africana. O repertório musical vem se enriquecendo”, conta. “Temos aprendido com muitos daqueles a quem conhecemos em nossas andanças e festas que acontecem em outros bairros, outras cidades do estado e em Minas Gerais.”

Procure imaginar o que se passa naquele local durante o cerimonial – da perspectiva de quem acaba de entrar. De antemão: não corresponderá à experiência pessoal, já que nem a linguagem e nem a fotografia dão conta da realidade. Apenas oferecem pistas: o piso ornamentado é um gracejo do tempo. À direita, um balcão onde se acomodam as ervas e outros elementos que desfilarão no dia. À esquerda, um móvel de vidro com imagens de santos, velas e outras miudezas para venda. A transição para um chão de madeira marca o acesso aos bancos enfileirados até a beira do altar e o local onde se concentra a banda, com seus instrumentos de percussão, logo abaixo de São Benedito, no canto esquerdo.

Após o toque da trombeta, tem início a liturgia, variada de acordo com o mês e as datas importantes ao calendário cristão ou à cultura negra – como o Dia da ­Consciência Negra, comemorado em novembro, com menções a Zumbi dos Palmares, entre outros expoentes. Aqueles que participam da celebração vestem-se de roupas com motivos afros. As mulheres enfeitam os cabelos com turbantes e flores. No ar, perfume de alfazema e arruda.

O fato, ansiado pelo povo por um mês, se desdobra alegre e emotivo por todos os cantos, sob o amparo dos estandartes das irmandades que fundaram a igreja e por ela zelam há mais de 100 anos. Elas exerciam o papel de assistir os mais necessitados e auxiliar na alforria de irmãos. Quem podia colaborar pagava uma mensalidade, e os recursos eram destinados a esses fins. A Irmandade do Rosário, segundo os autos presentes na Cúria de São Miguel Paulista, data de 1755. Tinha autonomia de decisões, total controle de seus recursos e objetivo de cuidar dos que não tinham condições de tratar de uma enfermidade, além de assegurar que seus familiares fossem enterrados com dignidade.

Não há registro da sua extinção. “Pode ter ocorrido entre o final do século 19 e o início do 20, coincidindo com o processo de romanização da Igreja Católica no Brasil, quando houve a separação entre Igreja e Estado, suprimindo alguns privilégios do aparelho eclesiástico. A romanização tinha como finalidade centralizar, hierarquizar e combater a religiosidade feita pelo povo liderada por leigos, como as irmandades de negros”, conta Júlio Cesar. “É também desse período o surgimento de novas ordens que atendiam a essa hierarquia: Congregados Marianos, Filhas de Maria, Apostolado da Oração, entre outros.”

Em 1934, foi fundada a Irmandade de São Benedito, que já não tinha a mesma autossuficiência da anterior, pois havia um pároco como responsável e representante da diocese local. Provavelmente deixou de existir após o golpe, nos anos 1960. A característica fraternal que o próprio nome sugere dá o tom a essa nova configuração de amigos – que se dizem irmãos – e encabeça os festejos em reverência aos seus antecedentes, lembrados pela resistência.

Carlos Casemiro adora rememorar a história porque, na estrutura do quebra-cabeça, figuram seus avós maternos, ­Edmundo Narcizo e Silvina Narcizo, zeladores da Igreja do Rosário dos anos 1930 aos 1960. Silvina nasceu em 1888 (ano da abolição), portanto cresceu sob o regime do Ventre Livre. Ela e seu futuro marido viriam, na fase adulta, a compor a irmandade que daria continuidade às tradições religiosas de seus antepassados com uma questionável liberdade, ainda às custas de muita luta – fato que permanece até os dias de hoje.

A comissão de festas, responsável pelo Cerimonial, responde à Igreja Matriz da Penha – que “guarda” a chave da capela, entregando-a apenas nos dias de eventos. “Hoje entendo melhor o que presenciei junto aos meus pais naquela igreja. Sinto essa energia”, relata Casemiro – que conduz, junto com Morelli, o cerimonial. A família já está na quarta geração de frequentadores da Igreja do Rosário.

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Chão de fé

Nayara Rodrigues Francisco, de 25 anos, está entre os que mantêm a tradição. E também se emociona ao descrever o que sente durante a missa afro. “A participação de pessoas de várias comunidades, raças e crenças em prol de um patrimônio histórico e cultural, além da fé que tem nesse chão, é de fazer chorar.”

Ela é certeira sobre a fé que há no chão. Todo o bairro da Penha guarda memórias religiosas seculares. Ponto estratégico na rota comercial da Vila São Paulo a Minas Gerais, o bairro – interiorano nos idos do século 17 – era composto por terrenos loteados para a criação de gado, plantação de cana-de-açúcar, algodão e cereais, mas também destino procurado por devotos de Nossa Senhora da Penha.

Diz a lenda que um viajante francês passava pela região, onde se recolheu por uma noite. Já bem distante da colina da Penha, no dia seguinte, percebeu a falta da santa em sua bagagem. Retomou ao local da hospedagem e a encontrou lá.

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José Morelli é um dos entusiastas do evento

O fato aconteceu uma outra vez, o que o levou a compreender que Nossa Senhora da Penha queria ficar na região. Ele então construiu uma igreja para abrigá-la, que passou a ser visitada por peregrinos de diferentes regiões. Com o apóstolo Paulo, a santa é padroeira da metrópole paulistana.

São três as principais igrejas católicas do bairro. Esta, que teve origem na ermida construída pelo lendário francês, a matriz – que em 1985 foi elevada à categoria de basílica menor pelo papa João Paulo II – e a do Rosário, representativa do movimento negro.

Isabella Santos fundou em 2014 o Sampa Negra, uma agência de turismo que tem como objetivo perpetuar as tradições de matriz africana, enaltecer a importância da cultura negra para a construção da cidade. Com patrocínio da prefeitura, por meio do Programa para a Valorização de Iniciativas Culturais (VA), criou o roteiro Rosário a Rosário, que tem como protagonista a Igreja do Rosário – o mapa liga a Igreja da Penha ao Largo do Paissandu, pontuando locais representativos da luta e da resistência da população negra. O resultado pode ser conferido no site www.sampanegra.com.br. “O roteiro é um convite para usufruirmos o que a cidade oferece de transporte público e a pé, podendo usar o celular como ferramenta dessa (re)descoberta.”

“Não queremos desrespeitar o romano, mas dar voz aos nossos antepassados reproduzindo suas celebrações numa comunhão de fé”, diz Sérgio Oliveira, idealizador do cerimonial afro e organizador do repertório. “Não podem faltar canções que falem da luta do negro para uma sociedade e convívio em igualdade social, religiosa, com todos os outros irmãos.” Torna-se bem compreensível o que ele diz ao se ouvir o Canto das Três Raças (Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro) imortalizado por Clara Nunes, entoado por todos com profunda emoção.

Todo mês
Cerimonial afro da Igreja Nossa Senhora do Rosário da Penha de França
Primeiro domingo, das 10h às 12h
Largo do Rosário, Penha, São Paulo