lalo leal

‘Aquarius’ contra os vilões urbanos

Depois do ótimo 'O Som ao Redor', novo filme de Kleber Mendonça vai ao âmago da degradação civilizatória promovida pela especulação imobiliária. Um filme corajoso e incômodo – como seu elenco

MATHILDE PETIT/FDC

Protesto em Cannes deixou o governo interino furioso

Alguns parlamentares – como o senador Cristovam Buarque – só tremem diante da repercussão internacional do golpe perpetrado contra a presidenta Dilma Rousseff. No mais estão tranquilos, sabendo que a mídia brasileira se perfila ao lado deles, sem nenhum pudor. Mas o calo internacional não para de doer. E foi justamente no exterior que o diretor e o elenco do filme Aquarius resolveram denunciar o golpe, ainda em maio, em pleno tapete vermelho do Festival de Cannes, diante de câmeras e microfones de todo o mundo. Levantaram cartazes em inglês e francês afirmando que “um golpe de Estado havia ocorrido no Brasil” e que “o mundo não deveria aceitar esse governo ilegítimo”.

Provocaram a ira dos golpistas e sofreram retaliações mesquinhas. O filme foi classificado para maiores de 18 anos pelo Ministério da Justiça, numa forma peculiar de censura (depois reclassificado para maiores de 16 anos) e um dos escolhidos pelo governo para a comissão que irá definir o candidato brasileiro ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2017 é Marcus Petrucelli, jornalista da Globo, inimigo declarado do diretor de Aquarius, Kleber Mendonça.

O filme, em si, é ótimo – e nem toca na crise política. Vai ao âmago de uma das maiores tragédias nacionais: a especulação imobiliária que corrói o Brasil de alto a baixo, destrói riquezas materiais e simbólicas irreparáveis. Rouba o sol das praias, como no caso das tardes em Boa Viagem, em Recife, ou o que resta de verde no centro de São Paulo, com o projeto de espigões sobre o que poderia ser o Parque Augusta. E contribui ainda para congestionamentos gigantescos ao colocar centenas, ou até milhares de pessoas com seus automóveis, para morar em ruas antes habitadas por poucas famílias.

Clara, personagem vivido de forma brilhante por Sonia Braga, é uma jornalista e escritora aposentada que não se dobra às investidas de uma construtora, ávida por demolir o pequeno prédio onde mora, chamado Aquarius. Todos os seus vizinhos venderam os apartamentos mas ela resiste bravamente e sua resistência conduz a narrativa do filme.

A violência dos especuladores é assustadora mas não irreal. Vai das propostas financeiras apresentadas entre sorrisos melífluos e aparentemente cordiais a ações agressivas buscando desestabilizá-la emocionalmente. Quem já passou por essas situações sabe a extensão do drama.

Mas em meio a tudo isso Clara vai a festas, cuida do neto, tem desejos sexuais, nada na praia, não abre mão do seu vinho. Ouve boa música, dança. Ao mesmo tempo enfrenta com altivez seus inimigos. Os reduz à sua insignificância mercantil.

Em seu primeiro longa, O Som ao Redor, o diretor Kleber Mendonça Filho, ex-jornalista, já havia ironizado a imprensa marrom ao colocar na boca de uma dondoca, em reunião de condomínio, uma reclamação contra o zelador do prédio porque a sua Veja chegava com o envelope de plástico aberto. Uma rara crítica negativa ao filme veio justamente dessa revista, curioso não?

Agora ele vai mais fundo e mostra a falta de preparo de jovens repórteres ao entrevistar Clara, personagem com história de vida riquíssima, reduzida no jornal a uma usuária do MP3 e das demais mídias digitais. Além de mostrar a promiscuidade das relações familiares existentes entre os donos de um grande jornal e a construtora algoz de Clara. Um deles, no filme, chega a dizer que só permanece no ramo porque sabe de muita coisa que obviamente não publica.

Nada muito diferente da vida real. Basta ver o grande número de páginas ocupadas nos jornalões por anúncios de empreendimentos imobiliários. A contrapartida, pode-se deduzir, é a ausência de matérias mais aprofundadas sobre os males causados pela especulação imobiliária ao urbanismo brasileiro.

Resta-nos o cinema, que no caso de Aquarius vai além do drama urbano. Pode ser visto também como uma alegoria à truculência que hoje nos cerca, com a imposição ao país de um programa de governo que não foi escolhido pelos eleitores. A arrogância dos empreiteiros do filme é a mesma dos políticos sem voto que querem nos governar. Não é por acaso que, no Festival de Gramado e na pré-estreia em São Paulo, os gritos de “fora, Temer” ecoaram pelas salas de projeção.