Arte e denúncia

Silvio Tendler prepara filme sobre o capital financeiro

'Transferimos todas as decisões para um lugar sem controle nem transparência. O mundo não aprendeu com 2008', diz o cineasta

VITOR VOGEL/RBA

‘Acho que o mundo pode mudar, e mudar para melhor. Eu sou otimista.’

No site da sua produtora, a Caliban – referência a personagem de Shakespeare na peça A Tempestade, um símbolo de resistência –, Silvio Tendler é apresentado como tendo 48 anos de cinema. Ele mesmo contesta suavemente a informação. “A gente estreia quando vai pela primeira vez”, afirma, contando que na infância os pais o levavam aos cinemas perto de casa, em Copacabana, no Rio de Janeiro. “Era minha principal diversão desde os 5 anos de idade”, diz Tendler, que por essa conta conclui ter 61 anos de cinema – nasceu em março de 1950, no bairro da Tijuca, zona norte do Rio.

O marco zero, ao menos formal, é o curta Fantasia para Ator e TV, de 1968, dirigido por Paulo Alberto Monteiro de Barros, em que Tendler aparece como assistente de direção. São décadas de produção contínua e múltipla, já que o diretor costuma se envolver com vários projetos simultaneamente. No ano passado, por exemplo, lançou dois filmes, Parir é Natural e Haroldo Costa – O nosso Orfeu, além de uma série (Há Muitas Noites na Noite).

Em 2016, produz mais séries e projetos de três curtas e três longas. Entre os trabalhos em curso, está um filme sobre a influência do capital na política. Tem o nome provisório de Dedo na Ferida. “É uma crítica à política dominada pelo sistema financeiro. Você não discute mais o dinheiro a serviço da produção”, diz Tendler, lembrando que se trata de um fenômeno mundial. “Acho que é a primeira vez que vamos discutir com profundidade a força do sistema financeiro na economia.” Segundo a apresentação do filme, que fala em “ciclo de submissão”, a ideia é sugerir “o fortalecimento da democracia como resistência à ideologia da economia privada”.

O trabalho deverá estar concluído até o fim do ano, com pelo menos 30 entrevistas. Dedo na Ferida é feito em parceria com o Sindicato dos Engenheiros (Senge) do Estado do Rio de Janeiro e com a federação interestadual da categoria (Fisenge). Para Tendler, isso ajuda a “devolver para a sociedade civil o protagonismo das ações transformadoras”.

Em julho, ele esteve na França – onde morou durante quatro anos, na década de 1970 –, para conversar com o diretor grego Costa-Gavras, autor de clássicos como Z, Estado de Sítio e Missing, e de obras que também tratam do tema abordado pelo cineasta brasileiro, como O Corte (2005) e O Capital (2012). No primeiro, um engenheiro perde o emprego e, desesperado, se torna um assassino. No longa mais recente, Gavras conta a história de um jovem executivo que chega à direção de um banco europeu com a missão de levar adiante um plano de demissões em massa, e a rede de intrigas formada nesse “jogo planetário”. Uma frase do filme, pronunciada pelo protagonista: “Os americanos querem que eu demita. Os franceses, que eu fracasse. E minha equipe quer me apunhalar”.

Austeridade

Silvio Tendler também já conversou sobre a situação da Grécia com a espanhola María José Fariñas Dulce, professora de Filosofia do Direito na Universidade Carlos III, de Madri. “Não é nenhuma radical”, observa. Ela foi uma das integrantes de um tribunal internacional organizado no Brasil em julho, para “julgar” – e condenar – o processo de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff. E considerou a situação política brasileira parte de uma “contrarrevolução neoliberal” também vivida na Europa. “Ela falou, por exemplo, que a Grécia está empenhada aos bancos”, diz o cineasta.

A lista de entrevistados inclui ainda Yanis Varoufakis. Trata-se do economista e ex-ministro de Finanças da Grécia, contestador dos regimes de austeridade e crítico da chamada Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional). Em entrevista ao El País em fevereiro, ele defendeu uma Constituição europeia “redigida pelos cidadãos e não pelas corporações”, pedindo transparência. “A intenção (da União Europeia) é democrática, mas transferimos todas as decisões para um lugar sobre o qual não existe nenhum tipo de controle nem transparência…”

O cineasta brasileiro acredita que o mundo não “aprendeu” com a crise financeira deflagrada em 2008, que chegou a pôr os mercados financeiros em xeque. “Olha a situação do Brasil hoje e me diz se alguma coisa mudou. Só tiraram o bode da sala”, diz. Segundo ele ouve dos entrevistados, a globalização é irreversível. Também está em curso um processo de diminuição do papel do Estado, que muitos veem ainda como uma força reguladora na economia. “É uma posição que eu também defendo, mas que está bastante fragilizada. A economia está muito mais dominada pelas empresas. Os Estados são reféns.”

Reformas

Com 14 anos completados 20 dias antes do golpe de 1964, o cineasta é de uma geração que discutiu e vivenciou momentos de industrialização do Brasil, de expansão de sua economia, e lutou pelas chamadas reformas de base. Expressou e expôs o processo histórico brasileiro em várias de suas dezenas de obras, como Os Anos JK – Uma Trajetória Política (1980), Jango (1984), A Era JK – Saudades do Brasil (1992) e Tancredo, a Travessia (2011). Seu acervo particular compreende mais de 80 mil títulos sobre história do país e do mundo.

“Antes de Juscelino e Jango, temos de pensar que o Brasil de Vargas era outro. Antes de 1930, o Brasil não era industrializado, era um grande cafezal. Vargas desenvolveu o capitalismo e a presença do Estado na economia”, observa Tendler, citando empresas como a Fábrica Nacional de Motores e a Companhia Siderúrgica Nacional e lembrando das hoje chamadas parceria público-privadas. “Isso foi inventado por Juscelino nos anos 50. O Jango não teve tempo, ele foi sabotado. Se o Brasil tivesse feito a reforma agrária que o Jango pretendia, não estaríamos vivendo essa situação de caos econômico. Seria outro país.”

Ele não se considera um nacionalista. “Sou uma pessoa que pensa nos interesses do povo. Se isso é ser nacionalista…”, afirma, para em seguida, como exemplo, chamar de “crime” o que ocorreu com uma das empresas símbolo do país: “Criar a Vale, vender por um valor inferior a uma jazida e achar que isso é modernidade”.

Para Tendler, o enfraquecimento do Estado e o domínio do capital podem levar o mundo a uma tragédia. Seu filme “serve como alerta a situações que têm de mudar”, diz. “Acredito muito na força do cinema para a transformação da sociedade”, acrescenta o autor do documentário O Veneno está na Mesa, sobre a presença de agrotóxicos na alimentação.

Ele cita trabalhos que, pelo nomes, mostram um pouco de seu pensamento: Fio da Meada (“Sobre saberes ancestrais”), Sonhos Interrompidos e Caçador de Brasis. “Todos dialogam entre si. São uma descoberta do mundo em que a gente vive e o que queremos. Acho que pode mudar, e mudar para melhor. Eu sou otimista.”

Otimista, mas preocupado. Por isso, considera seu filme um “grito universal” à sociedade. “Temos de mudar o nosso projeto de desenvolvimento”, afirma. Para Tendler, as pessoas mostram incapacidade de discutir questões cotidianas. “Estão em seus casulos, com seus pontos de vista fechados.”

Ele considerou, por exemplo, “deprimente” a sessão da comissão especial do Senado, em 4 de agosto, que aprovou um relatório favorável ao impeachment de Dilma Rousseff sem entrar no cerne da questão, se houve mesmo as tais pedaladas. “Não existe mais a defesa de um projeto de nação”, afirma. Mas o diretor acredita que, se confirmado, Michel Temer terá os mesmos problemas que Dilma teve de enfrentar. “Com esse Congresso aí não vamos ter tranquilidade nenhuma”, diz, apontando para a “gula” dos deputados. “A minha esperança é de uma nova eleição (em 2018)’’, acrescenta, ainda sem saber qual seria a sua opção política.

Ao pensar na Olimpíada recentemente disputada no Rio, Tendler vê aumentar a importância do debate sobre a influência do poder financeiro. “Virou um evento comercial, onde os grandes atletas têm seus patrocinadores, o doping é um problema universal – não é só dos russos – e o espírito olímpico é pecuniário.”