Cabe tudo na embolada

Téo Azevedo, enciclopédia viva da produção brasileira

Com 2.500 músicas gravadas, mil cordéis e extenso trabalho de produção, Téo Azevedo divulga a cultura popular há décadas

SERGIO MOURÃO

Um disco sobre o Rei do Baião, Salve Gonzagão 100 anos, deu a Téo Azevedo o Grammy em 2013, na categoria melhor álbum de raiz

Quando o pai morreu, a mãe com sete filhos – ainda viriam mais dois –, Téo Azevedo, 7 para 8 anos, foi cantar nas feiras para ajudar a família. O inesperado pode ter contribuído para o início da vida artística de Téo, no meio da luta pela sobrevivência no interior de Minas Gerais. Com 73 anos, completados em julho, ele é um dos mais conhecidos cantadores, pesquisadores e produtores da cultura popular. Chama a viola de “instrumento mais bonito do mundo” e, de sua Alto Belo, distrito de Bocaiúva, no Vale do Jequitinhonha, em Minas, exalta a diversidade do Cerrado.

Téo calcula ter mais de 2.500 músicas gravadas, o que faz dele um recordista no Brasil. Produziu mais de 3 mil trabalhos e escreveu mil histórias da literatura de cordel, além de 12 livros sobre cultura popular. O corpo já sente efeitos da idade, diz Téo, mas “a cabeça anda melhor do que quando eu era novo”. Há pouco tempo, ele lançou o CD Cordas & Harmonia, com 15 faixas instrumentais de chorinho. “Estou com mais 85 choros inéditos”, avisa.

Em Montes Claros – a 45 quilômetros de Alto Belo –, para onde a mãe, dona Clemência, decidiu ir com a criançada depois da morte do marido, seu Teófilo, o Tiófo, o menino fez de tudo um pouco. “Lavava carro, carregava malas para as pessoas na Rodoviária ou na Estação Ferroviária, capinava hortas e, principalmente, engraxava sapatos”, conta o jornalista Carlos Felipe Horta no livro Téo Azevedo – um poeta cantador, lançado em 2014 (Letras&Letras). “Fazia repente para os fregueses enquanto lhes engraxava o sapato, contava as histórias do ‘Tiófo de um Braço Só’, ‘causos’ do sertão e muita coisa mais.”

Tiófo perdeu um braço ao ser atingido por chumbo da própria espingarda, durante uma caçada. Mesmo assim, aprendeu a tocar viola e violão. Mas em 1951, quando Téo filho tinha 8 anos e a família estava toda em uma fazenda no interior paulista, morreu de tifo. Dona Clemência levou a filharada para Montes Claros, e Téo foi à luta. Um dia, conheceu Antônio ­Salvino, camelô pernambucano que vendia remédios caseiros, e virou uma espécie de assistente, durante anos, até que, depois de um acidente, Salvino resolveu voltar para sua terra – e Téo, com 14, 15 anos, ficou. “O povo gostava de ouvi-lo cantando e declamando e ele passou a fazer desta arte meio caminho para a sobrevivência”, diz Horta.

Prisão e prêmio

Aprendeu na prática. Aos 17 anos, foi preso por se apresentar na rua. Cantou um repente dizendo que era crime prender um cantador. Deu certo? “Deu, porque o delegado mandou me soltar e deu um salvo-conduto.”

O tempo passou, Téo Azevedo continuou na estrada, ganhou prêmio Grammy (em 2013), virou amigo de Carlos Drummond de Andrade e parceiro, entre outros, do saxofonista Bobby Keys, do grupo Rolling Stones. Conta-se que o poema Viola de Bolso, de Drummond, teve Tiófo como inspiração.

 

Violeiro mineiro

Meu canto

Nem forte

Nem belo, singelo

Não foi bem assim, conta Téo. “Da primeira vez que conversei com ele, eu comecei a contar uns causos, ele achou engraçado. Uns causos jocosos, engraçados, né?”, lembra. As conversas aconteciam durante caminhadas de Drummond pelas ruas de Copacabana, onde morava o poeta, no Rio de Janeiro, por recomendação médica. “Era uma caminhada devagar… Aí, quando a gente chegou na porta do prédio, ele convidou para tomar um café, pegou um papel, caneta, escreveu num guardanapo e disse: é a cara do seu pai.” De Copacabana, tomando chuva, Téo pegou um ônibus para a rodoviária e voltou para Belo Horizonte. O papelzinho com os versos molhou.

Viola de Bolso ganhou versão musicada em 1979, gravada por Téo Azevedo no LP Brasil, Terra da Gente. Antes, ele cantou por telefone para Drummond, que aprovou. E liberou, dizendo: “A autorização é minha palavra”.

Gonzaga e Stones

Admirações ele tem muitas, como Luiz Gonzaga e Nélson Gonçalves. Ou Guimarães Rosa – compôs várias canções com letras para versos de domínio público coletados pelo escritor nascido em Cordisburgo, por onde Téo passou em outubro, visitando amigos como José Osvaldo dos Santos, o Brasinha (leia reportagem na edição 62). Recentemente, ele lançou o CD Mineirada Roseana, com 13 das 18 faixas inspiradas em poemas contidos em livros de Guimarães. Participam do disco gente como Paulinho Pedra Azul, Saulo Laranjeira, Chico Lobo e o Grupo Caminhos do Sertão, entre outros.

Mas ele conta: “Meu ídolo é Cândido Canela”. O poeta de Montes Claros teve muitos versos musicados por Téo, como Ternos Pingos de Saudade, que em 1978 ganhou o 1º Festival de Música Sertaneja, promovido pela Rádio Record.

Um disco sobre o Rei do Baião, Salve Gonzagão 100 anos, deu a Téo Azevedo o Grammy em 2013, na categoria melhor álbum de raiz. Ele conheceu o ídolo quando ajudava Salvino pelas feiras, com uma jiboia enrolada no pescoço, no começo dos anos 1950. Começou a fazer versos e conversou com Luiz Gonzaga, ganhou elogios e um dinheirinho. Foram se reencontrar anos depois, em Belo Horizonte – o mineiro fez um calango (um ritmo musical presente no interior de Minas e Rio de Janeiro), e o mestre gravou no LP 70 Anos de Sanfona e Simpatia, em 1983: A Peleja do Gonzagão x Téo Azevedo.

Gonzaga pediu ainda uma letra que falasse de Santa Luzia, padroeira da visão e do próprio músico, que nasceu em 13 de dezembro. O tempo passou, e a música – Padroeira da Visão (Santa Luzia) – só foi gravada para o disco que levou o Grammy, que tem a participação, entre outros, de Dominguinhos, Genival Lacerda, Caju & Castanha, Jackson Antunes e Assis Ângelo.

É o jornalista e pesquisador Assis que conta que Téo Azevedo tem uma versão de Asa Branca (Luiz Gonzaga/Humberto Teixeira), feita a várias mãos, inclusive as do saxofonista Bobby Keys, dos Stones. “Produzi duas músicas dele”, lembra Téo, que ainda não lançou a versão, “meio jazzística”, diz. “Tenho a autorização dele (Bobby, que morreu em 2014) e o take.”

Mestre de Folias de Reis, fundador da Associação dos Repentistas e Poetas Populares do Norte de Minas Gerais, Téo gosta de misturar. Viola caipira, viola nordestina, rabeca, Sinval da Gabeleira, João Bezerra, Antonio Nóbrega, Zé Coco do Riachão, que ele lançou. Gravou um disco de blues (Blues Matuto, de 2004) e até samba-rock (LP Grito Selvagem, de 1974, em que aparece na capa com cabelo black power). “Fui misturando gente por esse mundo”, diz. Mas a principal fonte é mesmo a cultura popular e a rica música brasileira. “É milionária”, corrige, brincando.

“E eu considero o brasileiro o maior músico do mundo, pela criatividade”, afirma, tocando em frente. “Tem gente que dá, tem gente que não dá valor. Uma coisa que eu notei nestes anos todos é o seguinte: tem o pioneiro que segura as pontas de determinados estilos e os que criam os afluentes e deixam os criadores para trás. Eles não somam. A viola caipira tá na faculdade, no brega, no samba, na MPB, tá em tudo. Mas cada um criou sua turma. Tinha de somar para dar força”, acredita Téo, para quem é preciso “reconhecer os que vieram antes e que abriram o caminho na enxada, sem a tecnologia e sem a divulgação de hoje”.

Téo chegou a São Paulo em 1969 – ainda conserva um pequeno apartamento na região central, para as idas e vindas. Em 2015, ganhou título de Cidadão Paulistano. Nos primeiros tempos de pauliceia, se apresentava na Praça da República, na região central. “Teve uma vez que Alceu Valença apareceu por lá e cantou uns 20 minutos, de improviso”, lembra, reconhecendo o talento de repentista do artista pernambucano. “Fui experimentando e ele foi direitinho”, diz o antenado compositor, autor da bem-humorada embolada O Papo no WhatsApp, gravada por Caju & Castanha (“É porque quando a pessoa/ Tá no zap conversando/ Não olha pra quem tá perto/ Não quer ninguém perturbando/ É só de cabeça baixa/ No aparelho teclando”).

A força criativa de Téo Azevedo pode se manifestar a qualquer momento. No comecinho de dezembro, durante passagem por Belo Horizonte, ele recebeu um jornalzinho na rua. Viu um texto sobre Jimmy Hendrix. Começaram a brotar versos sobre o “gênio musical do planeta guitarra” – “Com Little Richard na banda ele tocava/era fã de Eric Clapton, que muito admirava”. E pode ser que aquela velha parceria com Bobby Keys seja retomada. “Vou fazer um blues disso daí, me deu vontade. Pode ser que misture”, diz.