Sociedade

Écio Salles e a Flup: plataforma para os ‘grandes assuntos’

Um dos criadores da Festa Literária das Periferias, no Rio, fala sobre como a arte se junta à resistência contra a exclusão das comunidades pobres das grandes cidades

© AF Rodrigues / Flup / Divulgação

Feira literária das comunidades pobres do Rio mantém interesse em ações de resistência e também serve de plataforma para manter em debate os ‘grandes temas’, como diversidade, racismo, democracia e internet

Rio de Janeiro – Entre 10 e 15 de novembro foi realizada na favela do Vidigal, na zona sul do Rio de Janeiro, a sexta edição da Festa Literária das Periferias (Flup). Idealizada para ser, ao mesmo tempo, complemento e contraponto social à similar famosa e elitista Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), a Flup surgiu também no bojo do processo de pacificação iniciado no Rio de Janeiro com a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), daí ter se chamado inicialmente Flupp (Festa Literária das UPPs).

Apesar do atual estado de falência do Rio e do aparente fracasso da política de UPPs, os objetivos iniciais da Flup jamais foram abandonados. Ao longo destes seis anos, a festa literária, sempre precedida por um processo de formação – a Flup Pensa –, se consolidou na agenda cultural carioca como um dos principais eventos de inclusão social e descoberta de novos autores nas favelas e bairros periféricos do Rio. Após o golpe político vivido pelo Brasil com a chegada de Michel Temer à Presidência da República, a Flup se revestiu também de um perfil de resistência, sendo uma das poucas iniciativas independentes com caráter de inclusão social a terem continuidade no país.

Em conversa com a Revista do Brasil, um dos criadores da Flup, o escritor Écio Salles, fala sobre a história da festa literária, literatura de resistência, balanços e perspectivas, golpe, “coisa de preto”, política de segurança e formação de roteiristas negros. 

 

Como nasceu a Flup?

A ideia surgiu quando eu e Júlio Ludemir estávamos na Secretaria de Cultura de Nova Iguaçu (município da Baixada Fluminense) – eu era secretário nessa época – e fizemos algumas ações de literatura na cidade. O Júlio coordenava uma ação com jovens jornalistas que se ocupavam de produzir notícias positivas sobre Nova Iguaçu e a Baixada Fluminense. Mais de 400 pessoas participaram desse projeto e a gente percebeu que havia um volume de pessoas, havia um espaço para a literatura.

Esses jovens estavam sempre lendo, gostavam de escrever. Quando provocados a escrever, faziam textos bem bacanas. Mesmo com certa ingenuidade e sem muito domínio das técnicas de literatura por parte deles, havia ali uma situação muito favorável à literatura. E, como eu tive a minha própria vida transformada pela literatura, assim como o Júlio, a gente achou que ali poderia ter alguma coisa a mais para a gente fazer nesse campo.

Assim como o Afroreggae trabalhou com a música, a Cufa (Central Única de Favelas) com o hip hop, o Crescer e Viver com o circo, nós achávamos que, com a literatura, poderíamos produzir uma narrativa na cidade capaz de impulsionar as pessoas a ir além do lugar onde elas estavam naquele momento.

E também fazer uma espécie de Flip com preocupações sociais…

Ao mesmo tempo, enxergávamos dois fenômenos muito interessantes. Um deles, um pouquinho mais antigo, é ter surgido no Brasil uma festa literária como a Flip, em um balneário do Rio de Janeiro, mas em um país com um déficit de leitura como a gente tem, os índices de baixa leitura que as pesquisas todas alardeiam.

Ao mesmo tempo, o grande debate sobre segurança pública no Rio em 2010 eram as UPPs. Decidimos criar um festival literário que levasse essa ideia da Flip – com a presença de escritores etc. – para dentro das favelas. Mas com um ponto muito importante: que tivesse uma dimensão de formação capaz de criar novos leitores, mas, sobretudo, novos escritores.

Preparamos uma metodologia que consistia em realizar no período de março a setembro uma sucessão de pequenos encontros semanais entre escritores e um grupo que a gente inscrevia previamente e que sabia que a proposta era no final publicar um livro.

E os resultados foram logo aparecendo?

Deu muito certo: no primeiro ano nós fizemos encontros em 14 favelas, inclusive em São Gonçalo e na Baixada Fluminense. No final publicamos um livro com 43 novos autores, alguns dos quais são hoje referência na literatura brasileira, como Jessé Andarilho, que acaba de lançar seu segundo romance; como Ana Paula Lisboa, que hoje é colunista do jornal O Globo; Yasmin Tainá, que transformou o conto que ela publicou na Flup em filme e hoje é uma cineasta respeitada; Felipe Boaventura, que hoje é um contista com a carreira bem legal;  Henrique Coimbra, que é um jovem gay da zona oeste e tem uma visão de periferia bem diferente de tudo, ligada a shoppings e festas e homoafetiva; Raquel Oliveira, que foi namorada do Naldo, aquele traficante da Rocinha que ficou famoso no Brasil inteiro ao ser filmado dando uma rajada de metralhadora do alto de uma laje.

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Écio Salles, um dos criadores da Flup: estímulo à produção das populações excluídas

Ele foi morto em uma tocaia e Raquel virou chefe do tráfico no lugar dele. Ela escreveu um romance que já está virando filme; e o Rodrigo Santos, que lançou o romance Macumba, a história de um detetive evangélico que vai investigar crimes ocorridos em terreiros de candomblé e, nisso, faz uma jornada pessoal que não só dissolve seus preconceitos como conta uma história da tradição cultural brasileira pelo lado afro, que é muito interessante.

A cada ano, a Flup tem um processo prévio que dura vários meses. Como ele se dá?

Com a Flup Pensa, de 2012 para cá nós fizemos mais de 100 encontros em 70 favelas, lançamos 17 livros e 230 novos autores. Esse processo da Flup Pensa culmina na própria Flup, que este ano realizamos na comunidade do Vidigal, mas que também é itinerante.

A primeira foi no Morro dos Prazeres, quando homenageamos Lima Barreto; depois Vigário Geral, com homenagem a Luiz Salomão; Mangueira, com homenagem ao Abdias do Nascimento; Chapéu Mangueira e Babilônia com homenagem a Nise da Silveira; ano passado na Cidade de Deus, com homenagem ao Caio Fernando Abreu; e este ano no Vidigal, com homenagem ao Vianinha.

Cada autor dá um pouco de orientação de como aquela edição vai ser, embora, é claro, questões como a loucura (que está em Nise), a diversidade sexual (presente em Caio Fernando) ou a negritude (que está em Abdias) estejam sempre acompanhando a Flup. Procuramos discutir os grandes temas do país hoje. O Brasil vive um momento crítico, de mostrar que país quer ser, e sempre estivemos na contramão dessa onda conservadora.

Como a Flup se sustenta financeiramente?

Sobretudo a partir de patrocínios. A maior parte vem de leis de incentivo, como Lei Rouanet, ISS e ICMS. Mas, também temos parcerias de cooperação internacional, como a Fundação Ford, que era um desejo antigo nosso, e parceiros locais, como o Ministério Público do Trabalho, o Museu da Língua Portuguesa e o Sesc, que viabilizam ações específicas. No geral, os principais patrocinadores são BNDES e Banco Itaú.

Diante do processo de golpe político vivido pelo Brasil, a Flup pode ser considerada um bastião de resistência?

Tem esse foco de resistência, mas também de plataforma para que a gente não abandone os grandes temas, os grandes assuntos. Isso foi inadvertido, nem havíamos pensado dessa maneira inicialmente, mas a Flup é muito porosa para ideias que vêm de fora e que achamos interessante discutir em qualquer lugar.

Estamos na favela porque acreditamos que a favela seja um lugar como qualquer outro. Apostamos muito nisso. Fazemos muitas atividades em escolas públicas de ensino médio, e vemos que as questões de gênero e diversidade sexual já estão manifestas ali. Na minha época de estudante, se um jovem gay se manifestasse ostensivamente, certamente muitos de nós seríamos hostis a ele porque a homofobia era a regra. O mundo mudou para caramba de lá para cá, e esses temas já estão ali.

Essa discussão hoje sofre com o ataque dos campos conservadores da sociedade brasileira. Como mantê-la viva?

Não queremos forçar essa história de ideologia de gênero, isso é uma bobagem, mas esses são temas que estão aí no mundo presente e a gente tem de debater. A Flup tem um lado de resistência, sim, mas também esse lado de plataforma para os temas mais palpitantes, mais urgentes, mais prementes em qualquer território, seja a favela, o centro ou a periferia.

Precisamos discutir as questões de gênero, o nosso racismo, a nossa democracia, as redes, a internet. É fundamental que a gente não abandone esses temas, com crise ou sem crise, com avanço conservador ou sem avanço conservador. Mais do que pautas de esquerda ou de direita, esses são temas humanos importantíssimos, e sem discuti-los a gente não vai a lugar nenhum.

O que representa para a Flup a falência da política de pacificação implementada pelo governo do Rio? Por que a festa, que se chamava Flupp, mudou de nome?

Na verdade, um olhar retrospectivo demonstra que o projeto da pacificação já nasceu complicado. A própria ideia de pacificar, entre aspas, os territórios populares, e não a cidade como um todo, já era frágil. Por um lado, porque ela partia de um princípio sempre visto de fora para dentro, sem ouvir de verdade os moradores. Por outro, porque ela perpetuava a ideia de favela como espaço não pertencente à cidade, como espaço de carência e violência, em vez de reconhecer sua potência e contribuições.

Além disso, apesar dos insistentes discursos do secretário de Segurança à época de implementação das UPPs, a necessária presença de outros serviços públicos – como saúde, educação, saneamento, infraestrutura, cultura… – nunca passou de ações pontuais, insuficientes ou insustentáveis. Desse modo, a ideia generalizada de que o Estado só se faz presente na favela com a repressão policial não só se manteve como prosperou.

Houve avanços, é verdade. Mas, na prática, a lógica militar de ocupação nunca foi capaz de lidar com a diversidade das favelas e com a sua lógica, sua cultura e sua organização social. A ostensiva e implacável proibição aos bailes funk é um exemplo disso. A corporação, a não ser em raríssimas ocasiões, não foi capaz de entender a importância social, política e econômica dos bailes para a favela.

Em que momento essa referência às UPPs se tornou insustentável?

O episódio do desaparecimento do Amarildo, na Rocinha, foi lamentável, mas não surpreendente. Até aquele momento, apostávamos em designar o nosso evento como Festa Literária das UPPs – embora ele nunca tenha se restringido a esses espaços – como forma de provocar a reflexão para além da lógica repressiva.

Quer dizer: para nós era importante reconhecer a produção cultural – no caso, a literária – da própria favela e, ao mesmo tempo, trazer outras vozes literárias para dialogar com ela. Mas a partir daquele momento era insustentável tentar agregar valores democráticos, estéticos ou éticos a um projeto que vinha se distanciando cada vez mais desse caminho. Para nós, e especialmente para nosso público, aquela sigla tinha se tornado desconfortável, constrangedora até.

Os objetivos da Flup vão além da política de segurança ou pacificação…

Não há sentido na Flup sem as pessoas que dela participam a cada ano, seja no processo de formação, seja nas ações de culminância ao final. Foi por isso que a rebatizamos e adaptamos a marca. Mas, os princípios continuam os mesmos de sempre, ainda mais fortemente apegados à radicalização da democracia e a abertura às diferenças. Torcemos para que as políticas de segurança do país um dia sejam capazes de se aproximar desse viés. Afinal, não haverá política de pacificação onde as pessoas não possam ter voz, como nos ensinou a popular canção do Marcelo Yuca e O Rappa.

A mais recente iniciativa da Flup é a formação de roteiristas negros. O processo já está em curso?

Pelo processo de formação da Flup Pensa, nós reunimos centenas de pessoas – de favelas diferentes – que tinham histórias incríveis para contar, e nem todas voltadas para o crime. Havia muitas histórias bacanas ali.

Nós fomos provocados mais de uma vez: pelo João Ximenes Braga em 2014, pelo Bernardo Vilhena em 2015. Eles diziam: vocês têm um manancial de pessoas incríveis com histórias incríveis e eles estão lidando com literatura, estão aprendendo a narrar, a escrever, a dominar as técnicas e linguagens. Ao mesmo tempo, há um mercado de trabalho de audiovisual se abrindo no Brasil. Vocês têm de ir para roteiro.

Até que a Filmes B, com a Ana Beraba, que é parceira nossa, comprou os direitos do romance da Raquel Oliveira, que já vai virar filme, e do romance do Rodrigo, que está em negociação.

Decidimos então que uma parte da Flup Pensa seria direcionada a roteiros. Ao decidirmos isso, nos deparamos com uma informação muito grave, a de que no Brasil apenas 4% dos roteiristas empregados são negros. Em uma conversa com o Lázaro Ramos, ele até brincou: não são 4%, são quatro roteiristas: ele, Jefferson Lima, João Isidro e Paulo Lins.

É evidente que há alguns outros, mas a piada é válida porque você não enxerga muito além disso. Aí, a gente resolveu fazer o Laboratório de Narrativas Negras para Audiovisual, cujo objetivo é formar novos escritores, novos roteiristas para tevê e cinema que tenham essa característica, a daqueles que foram escravizados no passado e que até hoje ainda não foram totalmente reparados, que são os negros e as negras brasileiras.

A mesma pesquisa que diz que há 4% de roteiristas negros revela que, em relação a mulheres negras, o percentual é de zero por cento.

Como diria certo jornalista, isso é “coisa de preto”?

Vamos fazer uma coisa de preto para mexer com esse campo, provocar esse cara. Porque senão viria muita gente de classe média, que já tem experiência e que já vai conseguir por outros meios. Aí, fizemos uma parceria com a Globo, que foi muito generosa ao disponibilizar feras como Jorge Furtado, Adriana Falcão, Glória Perez e Guel Arraes.

Ali foram surgindo provocações, dicas e fizemos um estudo dos argumentos que estavam sendo colocados. A finalização disso foi a formatura de 34 roteiristas, que aconteceu agora na Flup, e em 21 de novembro entregaram argumentos de um filme que foi trabalhado ao longo desses meses. Esses argumentos irão para o mercado e podem virar projetos de audiovisual que podem mudar a vida dessa rapaziada.

Essa é nossa aposta: qualificar roteiristas negros e introduzir uma diversidade que o mercado de audiovisual brasileiro certamente não tem, tanto em termo de histórias quanto em termo de autores que possam pensar essas histórias fora da caixinha branca e de classe média com a qual nos acostumamos. Nada contra os brancos de classe média, mas cadê os outros? Os demais precisam ter voz também para que possamos ter acesso a uma informação mais completa e mais detalhada sobre o que é o Brasil contemporâneo.

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Atividades infantis na Flup Vidigal: referências formadas e forjadas dentro da própria comunidade têm o rosto de sua população