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Mais Médicos foi para muitos a chance de ser atendido pela primeira vez

Milhares de médicos cubanos deixam o Brasil após declarações do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL). 'Aprendi muito e volto feliz. Claro que deixo um pedacinho do meu coração aqui'

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Mais de 8 mil médicos devem deixar o Brasil até meados de dezembro

“Não somos obrigados a voltar, não somos obrigados a nada em nossa pátria. Fomos educados com o princípio de ajudar a todos que necessitarem de nossa ajuda, tanto como médicos como seres humanos”

São Paulo – Depois de declarações ofensivas do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL), o Ministério da Saúde de Cuba resolveu deixar o Programa Mais Médicos, que trouxe milhares de profissionais ao Brasil desde 2013. No momento da ruptura, eram mais de 8.300. Eles já começam a se despedir e a maioria deve estar de volta a Cuba até meados de dezembro. A noite da segunda-feira (26) foi de despedida para centenas deles que atuavam em São Paulo. Foi o terceiro grupo de atuantes no estado de São Paulo a deixar o país desde sábado.

Maribel de Armas Chala veio para ficar três anos, mas deixou sua residência temporária, a cidade interiorana paulista de Canitar, com menos de 5 mil habitantes, a 370 quilômetros da capital, após um ano e quatro meses. Orgulhosa de seu trabalho, foi recebida no aeroporto de Guarulhos como heroína ao lado de outros colegas.

Entretanto, seu clima não era festivo. “Hoje vou embora com muita dor. Queria continuar trabalhando, terminar minha missão que é dar todo o meu conhecimento para a população, dar carinho”, disse.

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Brasileiras agradecem o trabalho dos médicos cubanos

Entre os que estavam ali para a despedida, o ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha, responsável pelo programa durante o governo Dilma Rousseff (PT). Padilha ressaltou a relevância do trabalho dos cubanos e a forma como praticam a medicina. “Vamos perder não só em quantidade, mas em qualidade. São médicos especializados em saúde comunitária (…) A formação em Cuba é tão interessante que hoje existem mil norte-americanos fazendo medicina em Cuba”, afirmou.

A brasileira Neli Aravecchia não tem nenhuma ligação específica com os cubanos, mas foi ao aeroporto prestar solidariedade e agradecer pelo trabalho. “A vinda dos médicos cubanos para o Brasil representou a possibilidade de que muitas pessoas pudessem ver um médico pela primeira vez. O sistema de formação do médico brasileiro trava a procura de lugares mais afastados. Medicina como mercado é diferente de medicina como direito humano”, argumentou.

De fato, como explica Padilha, muitos médicos não chegam nos rincões do país. “Dos concursos de contratações de médicos, em torno de 60% deles não se apresentam.” Por esse motivo, Neli considerou o fim do programa como “uma tragédia para as regiões mais pobres e mais afastadas, aonde mais precisam”.

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Angel Torres, que trabalhou no Guarujá, litoral de São Paulo

Solidariedade como política

O vereador da capital Toninho Vespoli (Psol) também estava no aeroporto empunhando um cartaz com dizeres de “Gracias, cubanos!” e cantando músicas da ilha caribenha com os demais, além de gritar em coro por “Ele não, Cuba sim”, em referência ao presidente eleito, responsável por ataques ao programa.

Para Vespoli, Bolsonaro foi irresponsável. “Já consegue fazer um estrago enorme para São Paulo e para o Brasil antes de assumir. Ele teria de governar para todos os brasileiros e brasileiras, inclusive para os que não votaram nele”, disse. “Em uma ação eleitoreira, ele incentiva essa divisão (…) Que sociedade é essa que ele pensa em fazer? Uma sociedade em conflito constante entre as pessoas. Está destruindo famílias. Famílias não conseguem conversar tamanha a cisão estimulada por esse tipo de atitude. Não é conciliador, é atitude de ódio”, completa o vereador, que é professor da rede estadual de ensino e morador do bairro do Sapopemba, zona sul da capital.

Ele teme que seu bairro fique sem médicos. “No Iguaçu, a parte de maior vulnerabilidade do bairro, tínhamos três médicos cubanos. Antes de entrarem os cubanos, ficávamos meses sem médicos porque os brasileiros não querem ir para essa região. Pessoas vão morrer.”

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Alguns cubanos foram presenteados com lembranças do Brasil

A crítica ao discurso de ódio está na fala dos cubanos ao deixar o adeus. Angel Torres, que trabalhou na cidade litorânea do Guarujá, elogiou o Brasil. “Trabalhei em uma favela, uma área carente. Digo que fui muito bem acolhido e sou muito grato com o povo brasileiro. Aprendi muito e volto feliz. Claro que deixo um pedacinho do meu coração aqui”, conta. “Eu queria ficar mais um pouquinho para ajudar mas tudo bem. Infelizmente ficou desse jeito e temos de ir embora”, completa.

Maribel, que volta para a cidade de Camaguey, de 300 mil habitantes, a 540 quilômetros de Havana, explica que o trabalho do médico cubano tem como base a solidariedade e que eles poderiam ficar no Brasil se quisessem. “Não somos obrigados a voltar, não somos obrigados a nada em nossa pátria. Fomos educados com o princípio do internacionalismo proletário, de ajudar a todos que necessitarem de nossa ajuda, tanto como médicos como seres humanos.”

Ao lado da colega, Marílyn Galloso, que atuou no município de Andradina, interior de São Paulo, conta que sua vocação também é uma questão política. “O povo cubano não dá o que sobra, compartilha o que tem (…) Tive o prazer de ter o melhor presidente do mundo, Fidel Castro. Esse grande prazer eu tive. Ele ensinou a todo o povo cubano que precisamos dar carinho. O mundo está carente de médicos e Fidel me formou para isso. Tenho a responsabilidade”, concluiu.