Patrimônio brasileiro

Não há linha divisória entre o cordel e a literatura padrão, diz escritor

Fundador da academia brasileira do gênero comenta reconhecimento do cordel como patrimônio nacional

Reprodução Museu da Pessoa

Gonçalo, escritor e fundador da ABLC: ‘Toda e qualquer manifestação humana começa na oralidade’

São Paulo – O reconhecimento, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), da literatura de cordel como Patrimônio Cultural Imaterial brasileiro, em setembro, não surpreendeu o fundador e presidente da associação brasileira do gênero (ABLC), Gonçalo Ferreira da Silva, ele mesmo autor de 300 títulos e 30 livros. Mas a espera foi longa: o pedido – claro, em forma de cordel – foi feito em 2008. “Foi uma peregrinação muito longa pelo Brasil”, diz o cearense de Ipu, a 295 quilômetros de Fortaleza, que ainda adolescente, aos 14 anos, sozinho, fixou-se no Rio de Janeiro.  “Não há mais uma linha divisória entre a literatura de cordel e a literatura padrão.”

Ele lembra das origens do gênero, principalmente na Península Ibérica, por volta do século 16. “Gil Vicente foi um teatrólogo, mas escreveu coisas de literatura de cordel”, exemplifica. Indo mais para trás, Gonçalo cita Dom Dinis, rei português, ele mesmo um trovador e fundador da Universidade de Coimbra. De origem nobre, “ganhou personalidade brasileira”, acrescenta. 

“São as mesmas modalidades usadas pela chamada literatura padrão. Até porque a língua portuguesa nasceu ali. Até a lusofonia garantir as características idiomáticas de um país como o Brasil”, diz Gonçalo, concordando com a identificação do cordel a partir de outras fontes, como o repente e os menestréis. “Toda e qualquer manifestação humana começa na oralidade”, observa, ressalvando que cada manifestação tem suas peculiaridades.

Em 2002, indicado por amigos, Gonçalo concorreu a uma cadeira na Academia Brasileira de Letras (ABL), vaga com a morte do economista Roberto Campos. Não chegou ao “segundo turno”, vencido pelo escritor Paulo Coelho, que teve 22 votos, ante 15 do sociólogo Hélio Jaguaribe. A cadeira 21 da Academia tem como patrono o abolicionista José do Patrocínio. “Obedeci os critérios”, recorda Gonçalo, que diz não ter queixa do processo.

A Academia Brasileira de Literatura de Cordel acaba de completar 30 anos. Foi fundada em 7 de setembro de 1988. E criada, segundo lembra Gonçalo, justamente dentro dos moldes da ABL. Atualmente instalada no bairro de Santa Teresa, entre o centro e a zona sul do Rio, tem 40 acadêmicos e 40 patronos. Uma ideia que tomava forma há pelo menos 11 anos.

“Desde 1977, eu já andava por essas partes. Ia para a Academia falar com os meninos de lá, a Casa Rui Barbosa…”, lembra, ao recordar ainda de sua entrada na Rádio MEC, onde foi de auxiliar de portaria a redator, ao longo de 33 anos, até se aposentar, depois um começo duro no Rio, vindo de pau de arara e com sequelas de uma paralisa infantil. Foi depois de fazer estudos na Fundação Casa de Rui Barbosa, em 1978, que ele passou a se dedicar à produção de literatura de cordel, com a qual tivera contato na infância, no Ceará.

Para ele, o surgimento da ABLC contribuiu para o aprimoramento do gênero. “Os poetas passaram a produzir com a preocupação de qualidade. A própria instituição impôs, silenciosamente, esse tipo de preocupação.” Por qualidade, Gonçalo fala, por exemplo, em rigor métrico. “A literatura de cordel não é poesia, é uma expressão cultural. O bom autor é aquele que faz uma boa narrativa”, afirma. O cordel, explica, deve ter um “crescente” até atingir “o ápice que escraviza o leitor”. 

“Na verdade, somos narradores. É uma contação de história, de um fato de humor, sátira política, ciência, o ciclo do cangaço”, exemplifica, antes de recitar parte de uma de suas obras, Senhor Livro: “Antes de dormir eu digo/ Vou guardar meu professor/ (…)/ Mesmo depois de formados/ Nós somos sempre obrigados/ A consultar o senhor”. 

Com quase 81 anos, que completará em dezembro, Gonçalo tem apenas parte da visão, mas diz que “a natureza compensa”. Sua academia não oferece chá das 5, como a outra, “mas tem o baião de dois”.