Sacou?

Quando a ordem, ou a desordem, das palavras altera o seu sentido

A partir desta semana, talvez um humano direito seja o sujeito que comprou ou pensa em comprar uma arma de fogo. Ou quatro, se for um cidadão de bem

Arte RBA/Imagens Pixabay

Vermelho ou verde pode ser adjetivo ou substantivo, como laranja, que pode designar uma fruta ou alguém que faz serviço sujo para outrem

Uma crença comum é que as palavras têm um só sentido. Ou que remetem a coisas que estão no mundo desde antes de as palavras existirem. Estas são inventadas para designar as coisas. Às vezes se chama a essa teoria de adâmica (de Adão), porque o “primeiro homem” teria dado nome às criaturas que desfilaram diante dele. Uma obra clássica de Platão, Crátilo, discute essa tese e sua oposta, a da arbitrariedade dos nomes (tese adotada por Saussure, por exemplo, e que muitos pensam que foi o primeiro a propô-la, e que ficou conhecida como arbitrariedade do signo).

Mas as coisas não são bem assim. As mesmas palavras designam coisas diferentes, como pode mostrar um clássico e banal exemplo: “manga” pode ser uma fruta ou uma parte de uma vestimenta. “Verde” ou “vermelho” podem parecer apenas adjetivos, para podem designar grupos de pessoas unidas por determinada ideologia (os verdes, os vermelhos) e, portanto, funcionarem como substantivos. Nem se conte que “passo” pode ser o verbo “passar” na primeira pessoa do presente ou um movimento que se faz ao andar.

Há outros casos interessantes, como o efeito produzido pela diferente ordem das palavras, como em “carro novo / novo carro”: no primeiro caso, fala-se de um veículo ainda não usado ou de pouco uso. No segundo, de um carro que pode ter sido já bastante usado, mas que pertencia a outro proprietário.

Às vezes, a mudança de ordem de uma palavra produz não só efeitos de diferentes valores de verdade (tenho um carro novo / tenho um novo carro), como também efeitos mais sutis, que exigem do leitor alguma argúcia, que preste atenção a detalhes. Depois de ouvir determinadas frases, a reação pode ser: “Saquei!”

Um bom exemplo é “uma manga na carta”, que foi manchete do caderno de culinária do Estadão há alguns anos. Trata-se de um jogo com conhecida expressão “carta na manga”. Esta deve ter nascido em jogos de baralho (alguém “roubava” escondendo uma carta de baralho na manga, isto é, de um paletó ou de um fraque, que isso sempre foi coisa de gente bacana). Invertida e posta num caderno de culinária, passa a ser o anúncio de uma sobremesa à base de manga, (uma fruta) posta num cardápio (carta).

Direitos humanos e humanos direitos

Um slogan tem feito sucesso na parcela mais conservadora da sociedade brasileira, e ele se baseia num jogo de palavras: “direitos humanos para humanos direitos”.

Tanto “direito” quando “humano” são palavra com dois sentidos. O dicionário Houaiss apresenta mais de 30 acepções para a palavra “direito”, sendo 12 como adjetivo (caminho mais curto entre dois pontos, de acordo com os costumes, de conduta impecável, que segue a lei e os bons costumes, justo, correto, honesto) e as outras como substantivo, dentre as quais sobressai a designação da área (do campo) que estuda as leis (formado em direito, p. ex.). Ouros sentido são “regalia, privilégio, o que é facultado a indivíduos ou grupos por força de leis ou costumes, prerrogativa”.

O sintagma “direitos humanos” não aparece entre os exemplos, o que não deixa de ser estranho, porque há 70 anos esta é certamente uma das expressões de maior circulação, pelo menos no ocidente dito civilizado, cujo objeto é alvo de muitas discussões, de embates e de políticas concretas (ou de sua ausência).

Considerados esses registros, a interpretação do slogan deveria ser objeto de uma hermenêutica cuidadosa. As perguntas são “o que são humanos?” e “o que são “direitos?”.

No sintagma “direitos humanos”, “direitos” é um substantivo (e plural, indicando que há mais de um). Seu sentido está próximo de “prerrogativa”, indicando que se trata de algo característico ou exclusivo da espécie (quem é humano deve ter X prerrogativas): o que quer dizer que não lhes pode ser negado o acesso à igualdade, à liberdade, à saúde. “Regalia” e “privilégio” conotam certo exagero, ou o fato de que certo “direito” é de fato uma excrescência.

O sentido de “direito”, neste uso, é restringido por “humanos”: trata-se de prerrogativas da espécie, que não necessariamente se devem às outras (animais, vegetais) – questão mais aberta, hoje, dadas as teses da preservação.

Em “humanos direitos”, “humanos” funciona como substantivo (como em verdes / vermelhos) e seu sentido é restringido por “direitos”. Vale dizer: as tais prerrogativas não devem ser estendidas a todos os indivíduos da espécie humana, mas apenas àqueles que são “direitos”. “Direito” se define, seguindo os registros do Houaiss, como “de acordo com os costumes, de conduta impecável, que segue a lei e os bons costumes, justo, correto, honesto”.

As acepções dão margem a alguma indeterminação: ser direito é seguir os costumes? Mesmo em regimes escravocratas? Mesmo em sociedades com legislação machista, homofóbica ou racista? Outra acepção talvez explique um pouco melhor a questão: “que segue… os bons costumes” (porque a lei pode não ser justa). “Bons costumes” parece melhorar um pouco a definição. Mas o que é um “bom” costume? Sabe-se que a sociedade se divide em questões como essa, mesmo se aplicada ao campo da política, mas especialmente ao da moral.

De fato, se nos valermos da memória (como é o caso de veste azul e veste rosa), veremos que “direito” (em “humano direito”) se associa a heterossexual, que não tem dívidas com a justiça, independentemente de como isso é conseguido; e se associa também ao “homem macho”, excluindo o homossexual. Eventualmente, até a mulher, sempre suspeita – claramente como a que não tem os mesmos direitos que os homens. Exclui o pobre, a não ser o submisso (um grevista não é muito direito…) e, claro, no lugar mais “baixo” da escala, exclui o negro, de qualquer gênero. Afinal, quem não desconfia do mal vestido que passa perto de sua casa? Ou do negro que pede ajuda no portão? Eles têm “uma cara” da qual desconfiamos…

A partir desta semana, talvez um humano direito seja o sujeito que comprou ou pensa em comprar uma arma de fogo. Ou quatro, se for um cidadão de bem.

Sirio Possenti é professor do Departamento de Linguística da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)