naturalização da tragédia

Brasil perto de 70 mil mortos pela covid-19. ‘Temos de nos preparar para o pior’, alerta cientista

Pesquisador da Fiocruz afirma que o cenário brasileiro é “lamentável”, e a tragédia não tem data para acabar

São Paulo – A pandemia de covid-19, doença provocada pelo novo coronavírus, segue descontrolada no Brasil. Com 1.220 mortes e 42.619 novos infectados nas últimas 24 horas, o país se aproxima das 70 mil mortes. Desde o início da pandemia, em março, são 69.184 vítimas e 1.755.779 doentes oficialmente registrados. As informações são do Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde), em boletim divulgado nesta quinta (9).

O Brasil tem mais do que o dobro de mortos do que todos os demais países da América do Sul somados. Em números globais, o país é o segundo mais impactado pelo coronavírus, atrás apenas dos Estados Unidos. Entretanto, o país latino realiza muito menos testes. Cientistas argumentam que o Brasil é um dos países que menos testa pessoas, comparativamente.

Enquanto países europeus e asiáticos promovem relaxamento de medidas intensas de isolamento social com cautela, o Brasil nunca chegou a adotar o isolamento de fato. Essa é uma das razões pelo qual o país não vê reduzir o número de mortos, e há mais de dois meses figura como epicentro da pandemia no mundo.

Dados consolidados pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass)

Descaso

Uma série de fatores preocupa os cientistas brasileiros. Entre eles, está o descaso do poder público, em especial do presidente, Jair Bolsonaro, que minimiza a pandemia, faz piada com as mortes, e defende o uso de um medicamento, a cloroquina (hidroxicloroquina) como se fosse “milagroso”. Em sua “saga”, argumenta ter contraído covid-19 e faz propaganda do remédio, postando vídeo nas redes sociais.

A ciência vai no caminho oposto. A cloroquina não tem eficácia comprovada contra o coronavírus e, em muitos países, foi abolida dos protocolos de atendimento. A afirmação vem de pesquisadores de todo o mundo, fato reconhecido pela Organização Mundial da Saúde. Entretanto, a ciência parece não importar para Bolsonaro, que segue mostrando despreparo para lidar com a pandemia.

Para o epidemiologista da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Jesem Orellana, o cenário brasileiro é lamentável, e a tragédia não tem data para acabar. “O governo federal falhou na gestão da crise. A influência que criaram sobre a população criou a falsa expectativa de que a pandemia era inofensiva e de que a cloroquina, ou outros medicamentos, são a cura para a doença”, disse à RBA.

Falhas e mais falhas

A má condução da crise e o descuido com a saúde pública têm várias faces, explica o cientista, que trabalha no norte do país, região bastante afetada pelo vírus. “Temos falhas na estrutura da vigilância laboratorial e epidemiológica em muitas cidades. Tem falha na vigilância sanitária e as falhas seguiram na estrutura médica e hospitalar. Tem uma conjunção de fatores, que se aliam à sazonalidade”, disse.

Enquanto a covid-19 segue deixando milhares de brasileiros mortos, governadores e prefeitos, que no início do surto chegaram a adotar medidas leves de isolamento, agora relaxam. Com o vírus se disseminando cada vez mais pelo interior do Brasil, a tragédia se intensifica. Muitas cidades não possuem mínima estrutura hospitalar ou de medicina diagnóstica. A subnotificação, que já é realidade, tende a crescer.

Durante a pandemia, mortes fora dos hospitais dobraram no Rio, aponta Fiocruz

“Vemos uma série de fatores que mostram para a sociedade, de forma inequívoca, que os erros e enganos levaram cidades como Porto Velho à beira do colapso na rede assistencial. Hoje, a capital de Rondônia tem uma situação diferente do que tinha em abril, quando o governador (Coronel Marcos Rocha (PSL)) iniciou o processo de flexibilização. Até então, a cidade tinha pouquíssimos casos e estava relativamente bem em relação ao restante do país. Mesmo com uma dificuldade enorme de fazer diagnósticos”, exemplifica Jesem.

As taxas de mortalidade da covid-19 em estados do Norte são as maiores do país, chegando a 71,6 mortos por 100 mil habitantes no Amazonas, 63,3 em Roraima, 54,6 no Amapá. A região tem 55,4 mortos por 100 mil habitantes, enquanto o Sudeste, por exemplo, que tem maior número geral de mortos e infectados, tem 35,1.

Covid-19 vira “natural”

A reabertura precipitada do comércio já mostra seus resultados negativos. “O caso é que hoje, mais de dois meses depois da reabertura do comércio, vemos Porto Velho encaminhando para o colapso. Rio Branco e Boa Vista também seguiram para essa situação bastante desfavorável e dramática”, afirma o cientista.

“O problema vai se estender por mais tempo e vai, provavelmente, vitimar mais pessoas de regiões mais distantes, regiões isoladas sem nenhuma estrutura hospitalar ou de vigilância. Temos de nos preparar para o pior. O avanço da epidemia no interior da Amazônia tende a tornar essa curta história de pandemia mais preocupante”, completa.

Para as reaberturas, muitos governantes usam de argumentos “pouco honestos”, argumenta Jesem. “Temos a naturalização da desgraça. Se olhamos a situação de Manaus e Belém, percebemos que em maio e junho houve uma redução na quantidade de mortes conhecidas, sem contar a subnotificação. O governo usa isso como argumento de que a situação está controlada e que é possível sair de uma suposta quarentena que, na verdade, nunca houve.”

“Insistem em dizer que a situação está controlada. Exploram essa comparação e isso é algo, no mínimo, desonesto. Estamos comparando uma situação ruim com outra situação pior. O correto seria comparar a situação ruim com a situação fora da pandemia. Não é isso que tem sido feito”, completa.

A base de comparação de muitas regiões do país também revela a desigualdade no tratamento. É como se uma vida em Manaus importasse menos do que em regiões do Sul, por exemplo. “Veja a naturalização da desgraça. Enquanto o governo de Manaus “comemora” 70 mortes, em Pelotas (RS), por exemplo, não tem nem 10 mortes até o momento e, o fato do salto de uma morte para cinco em 40 dias foi motivo para a cidade voltar para o isolamento, para uma quarentena mais restritiva. É uma diferença de percepção do governo e da sociedade”, finaliza Jesem.

Estados mais afetados pela covid-19

Fábio M. Michel


Leia também


Últimas notícias